domingo, 24 de março de 2013

HITCHCOCK FRAGILIZA SEUS PERSONAGENS E FRACASSA NAS BILHETERIAS

Primeira Guerra Mundial: o Serviço Secreto Inglês precisa identificar e neutralizar um agente alemão baseado na Suíça. Mobiliza, para tanto, os esforços de um espião improvisado, uma auxiliar desinteressada e um assassino espalhafatoso. O público em geral não apreciou a realização e Agente secreto (Secret agent, 1936) fracassou nas bilheterias. Provavelmente porque Alfred Hitchcock afrontou códigos narrativos consolidados, fragilizou os personagens e antecipou tendências mais contemporâneas do cinema.







Agente secreto
Secret agent

Direção:
Alfred Hitchcock
Produção:
Michael Balcon
Gaumont-British Picture Corporation Ltd., The Rank Organization
Inglaterra — 1936
Elenco:
John Gielgud, Peter Lorre, Madeleine Carroll, Robert Young, Percy Marmont, Florence Kahn, Charles Carson, Lilli Palmer e os não creditados Denys Blakelock, Tom Helmore, Andreas Malandrinos, Howard Marion-Crawford, René Ray, Michael Rennie, Michael Redgrave, Michel Saint-Denis.




Alfred Hitchcock entre John Gielgud e Peter Lorre nos bastidores de Agente secreto


Diante da pergunta “Você ama seu país?”, o suposto estadunidense Richard Ashenden (Gielgud) — mais novo espião do serviço secreto britânico — responde oferecendo mostras do humor hitchcockiano: “Bem, eu acabei de morrer por ele”.


O nome Richard Ashenden é, na verdade, disfarce para o capitão Edgar Brodie, novelista renomado e ás da aviação. Lutava contra os alemães nos céus da França durante a Primeira Guerra Mundial quando foi recrutado e deslocado do front para atuar como espião. O preparo da operação é cercado de sigilo. Ele, aparentemente, está morto. As primeiras, rápidas e solenes imagens do filme exibem um velório com caixão lacrado. Após a despedida dos presentes, o mordomo maneta, tomado de desajeitada decisão, desmonta todo o cenário e revela a urna vazia para o espectador surpreso.


Richard Ashenden recebe ordens de se instalar na alpina Suíça e localizar o incógnito agente alemão responsável pela difusão de falsas e prejudiciais informações aos interesses ingleses no Oriente Médio. Sobre ele, sabe apenas que é um elegante senhor hospedado no Hotel Excelsior. É fundamental barrá-lo antes de chegar a Constantinopla. Ashenden terá a companhia de um assassino, o mexicano Harry (!) (Lorre), mais conhecido como General. Mas o nome completo do personagem  como gosta de frisar  é Pompílio Montezzuma de La Piazza Del Conde de Lambu.



Peter Lorre interpreta o matador Harry, também conhecido como General

Harry dá o que falar! É um tipo esquisito, afetado, histriônico, mulherengo, pegajoso e furtivo. Ostenta bigodinho, fartos cabelos crespos e tez morena. Seu perfil parece antecipar, em tom de paródia, o Othello interpretado por Orson Welles em 1952[1]. O húngaro Peter Lorre caprichou na caracterização exagerada. Sua interpretação é um dos pontos fortes do filme, apesar de Hitchcock não tê-la apreciado, em absoluto. Sabe-se da tendência excessivamente controladora do diretor quanto aos atores. Deveriam se subordinar inteiramente aos seus desígnios. Pelo visto, Lorre atuou às velas desfraldadas. O resultado foi o encerramento da parceria com o realizador. Esta teve apenas dois filmes: Agente secreto e a primeira versão de O homem que sabia demais (The man Who knew too much, 1934)[2].


Ao se registrar no Hotel Excelsior, o solteiro espião Ashenden recebe, surpreso, a informação de que Senhora Ashenden o aguarda nos aposentos a ele reservados. Trata-se de outra agente britânica disfarçada, Elsa Carrington (Carroll). Fazendo-lhe a corte está o jovem cavalheiro estadunidense Robert Marvin (Young). Feitas as apresentações e desfeito o mal estar inicial com o intruso, Ashenden percebe que a parceira está mais interessada na satisfação de emoções e totalmente alheia à missão que devem cumprir.



Richard Ashenden (John Gielgud), Elsa (Madeleine Carroll) e Harry, o General (Peter Lorre)

Assim, de modo pouco crível, com a ação conduzida por um assassino espalhafatoso, um espião improvisado e uma auxiliar desinteressada, começa de fato a história de Agente secreto.


O roteiro de Charles Bennett, dialogado por Ian Hay e retocado por Alma Reville — para ganhar mais dinamismo — está apoiado em dois capítulos da novela Ashenden, de W. Somerset Maugham: O mexicano calvo (The hairless Mexican) e O traidor (The traitor), cujos motivos se complementam no fornecimento dos elementos de espionagem. De outro suporte, uma peça teatral de Campbell Dixon, foram extraídas as referências dramáticas e amorosas.


O resultado cinematográfico de tudo isso é um misto de ação, romance, comédia, aventura e suspense que caiu nas graças do National Board of Rewiew, dos Estados Unidos: elegeu Agente secreto o melhor filme estrangeiro de 1936. O público em geral pensou diferente e a realização fracassou nas bilheterias.


Ashenden e Harry saem em campo em busca do agente alemão. Mas o organista que os abasteceria com informações é morto. Com o corpo localizam uma pista que provocará muitos dissabores: um botão, arrancado das roupas do assassino. A frágil evidência conduz ao casal Caypor (Percy Marmont e Florece Kahn). Acreditam que Mr. Caypor corresponde às descrições do homem que procuram. O General o elimina, empurrando-o montanha abaixo durante escalada aos Alpes. Logo descobrem que deram cabo do sujeito errado. A crise moral provocada pelo assassinato de um inocente se apodera do “casal” Ashenden. Na relutância em dar continuidade à ação, Edgar e Elsa se apaixonam de fato. Ele redige comunicado ao serviço secreto, desligando-se da empreitada. Volta atrás quando o General, refeito do erro, obtém com Lili (Palmer), funcionária da fábrica de chocolates local, informações fundamentais à identificação do agente alemão.



O pobre Mr.  Capor (Percy Marmont), à esquerda, com Harry (Peter Lorre) e Ashenden (John Gielgud) 

Edgar e o General descobrem que a fábrica de chocolate funciona como entreposto à vazão das contrainformações inimigas. Mais: recebem indícios de que o verdadeiro espião é o insuspeito Robert Marvin, pronto para tomar o trem rumo a Constantinopla. É preciso correr para impedi-lo, inclusive despistar a polícia local, já sabedora da presença de espiões ingleses na neutra Suíça. Para piorar a situação, Elsa, decepcionada com o retorno de Edgar às atividades, resolveu seguir viagem com Marvin, mal sabendo dos perigos que a envolvem.



Harry (Peter Lorre), Elsa (Madeleine Carroll) e Richard Ashenden (John Gielgud)


Harry (Peter Lorre), Richard Ashenden (John Gielgud) e Elsa (Madeleine Carroll) rumo ao desfecho

Na estação, Edgar e o General ludibriam a vigilância e embarcam na composição que se enche de soldados e armamentos alemães após cruzar a fronteira. Tentam alertar Elsa. Em poder de Marvin, a relutante espiã é desmascarada. A salvação chega: aviões ingleses abrem fogo contra o trem, que descarrila. Marvin morre. Antes, mata o General. A missão é bem sucedida, mais como obra do acaso que de decisões intencionais. O filme chega ao fim com o chefe do serviço secreto, Coronel Anderson (Helmore), recebendo cumprimentos pelos bem sucedidos desdobramentos da operação. Sobre sua mesa um telegrama comunica: “Chegamos em segurança. Paz. Senhor e Senhora Ashenden” — agora verdadeiramente casados.



Robert Marvin (Robert Young)

Ao racionalizar sobre Agente secreto, na tentativa de entender as causas de fracasso junto ao público, Hitchcock, de certa maneira, arrepende-se da realização. Em entrevista a François Truffaut aponta como pontos frágeis os personagens destituídos de objetivos claros, os dilemas morais que praticamente os imobilizam e as artes do acaso interferindo na condução dos processos e nas responsabilidades que deveriam ser assumidas pelos indivíduos[3]. As plateias da época aderiam com mais entusiasmo aos elementos narrativos diretos e objetivos, aos indivíduos dotados de certeza no rumo das ações e imunes aos dilemas morais. Em resumo, nutriam empatia por tipos mais previsíveis, mecanizados. No péssimo livro Alfred Hitchcock, de Noel Simsolo, revela-se outro elemento que levou o público a virar as costas ao filme: a caracterização do vilão, excessivamente jovial, sedutora e simpática[4]. Pelo visto, Hitchcock antecipou tendências contemporâneas, presentes com mais força no cinema de ação a partir dos anos 50: humanizou excessivamente os personagens; também cortou, inconscientemente, qualquer identificação entre estes e os desejos de escapismo dos espectadores na ocasião de lançamento de Agente secreto.


Bom... Pior para o público! Os elementos reputados como falhos conferem, na minha avaliação, o que há de melhor em Agente secreto no quesito caracterização. É sempre salutar testemunhar os erros e a falta de direção dos personagens, principalmente dos protagonistas. Revelam-se, assim, mais humanos e críveis. Não são como seres robotizados, pré-programados, que parecem abusar da fragilidade dos mortais ordinários sentados diante das telas. O mesmo vale para o desenho do vilão. Seu perfil não foi estereotipado segundo os imperativos correntes. A interferência dos caprichos do acaso também é ponto positivo. Não é sempre que as ações humanas resultam de procedimentos inteiramente racionais, ainda mais quando se trata de espiões improvisados, agindo praticamente às cegas, obrigados a tomar decisões no calor da hora como em muitas situações do filme.



Ao centro, Elsa (Madeleine Carroll) e  Richard Ashenden (John Gielgud)

Por outro lado, quanto aos aspectos puramente cinematográficos, Agente secreto permite bom intercâmbio entre elementos visuais e sonoros. Algumas tomadas e construções cênicas são simplesmente geniais. As rápidas e eficazes sequências de abertura, introduzindo o espectador na história, revelam apenas alguns desses momentos brilhantes. Outros são: a estranha e inesperada desafinação do órgão, comunicando a morte do informante que o executava; Harry e Ashenden desnorteados no campanário da igreja, incapazes de ouvir um ao outro devido ao repicar dos sinos; o lancinante desespero do cachorrinho de Mr. Caypor, antecipando-lhe o brutal assassinato; Ashenden, na luneta, testemunhando apavorado e à distância o fim de Mr. Caypor, sem que o instante fatal fosse necessariamente mostrado ao espectador; o botão girando incontáveis vezes no recipiente, deixando a pesarosa Elsa cada vez mais aturdida e impotente; as cortinas se abrindo no quarto escuro onde Elsa e Edgar passaram a noite, acompanhadas do revelador toque dos sinos; a correria pela fábrica de chocolate após soar o alarme de incêndio; e, por fim, toda a sequência no trem em movimento, expondo tão bem a tensão que emana do ambiente, reforçada pelas sinistras imagens das forcas percebidas pelas janelas dos vagões tão logo a composição entra em território alemão.


Além do mais, elementos que conferem cor local e autenticidade ao ambiente não foram esquecidos: os Alpes, os lagos, as danças folclóricas, o chocolate, os relógios famosos pela precisão. Reforçam a boa impressão deixada por Agente secreto, um filme de espionagem pleno de momentos marcantes, tingidos de comédia, tragédia, drama, romance, tensão e humor negro. É um bom e incompreendido filme.



 Elsa (Madeleine Carroll), Harry, o General (Peter Lorre) e Richard Ashenden (John Gielgud)

Por fim, sobre a transformação da fábrica de chocolate em reduto de espiões alemães, Hitchcock, segundo palavras de Simsolo, ofereceu boa e atualíssima explicação: “Os consumidores não se preocupam com a origem daquilo que lhes dá prazer. Assim o espectador pode consumir qualquer tipo de propaganda caso não seja advertido”[5]. São dizeres que também poderiam funcionar como alerta para os anos que estavam por vir, de acirramento das tensões internacionais, desnudamento das intenções nazifascistas e, por fim, de guerra. Realizado em 1936, Agente secreto, com sua história de espionagem opondo ingleses e alemães no contexto da Primeira Guerra Mundial, parece antecipar o próximo grande conflito que eclodiria dentro de três anos.






Roteiro: Charles Bennett, Alma Reville (não creditada), com base na novela Ashenden de W. Somerset Maugham e em peça de Campbell Dixon. Diálogos: Ian Hay. Música: John Greenwood (não creditado). Diálogos adicionais: Jesse Lasky Jr. Direção de Fotografia (preto-e-branco): Bernard Knowles. Assistente da direção de arte: Albert Jullion. Assistente de direção: Pen Tennysson (não creditado). Gravação de som: Phillip Dorté. Camareiro: Albert Jullion (não creditado), J Strassner. Direção musical: Louis Levy. Continuidade: Alma Reville. Direção de arte: Oscar Friedrich Werndorff. Figurinos: Joe Strassner. Montagem: Charles Frend. Produção associada: Ivor Montagu. Operador de câmera: Stephen Dade (não creditado). Assistentes de câmera: Reg Johnson (não creditado), Gerry Massy-Collier (não creditado). Dublê: Michael Rennie (não creditado). Estúdios de gravação de som: Shepherd's Bush London. Sistema de mixagem de som: Full Range Recording System. Tempo de exibição: 86 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)





[1] Personagem de Otelo (The tragedy of Othello: the Moor of Venice, 1952), de Orson Welles.
[2] Peter Lorre partiu para Hollywood após Agente secreto.
[3] TRUFFAUT, François. Hitchcock/Truffaut: entrevistas. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1986. p. 65.
[4] SIMSOLO, Noel. Alfred Hitchcock. Rio de Janeiro: Record, s.d. p. 27.
[5] SIMSOLO, Noel. Op. cit. p. 27.