domingo, 14 de julho de 2013

DO JABOR ATUAL AO ANTERIOR: O CINEASTA DEIXOU SAUDADES!

O Arnaldo Jabor de agora é um dos piores subprodutos da Era Collor. O cineasta foi transformado em comentarista político e do cotidiano por obra dos desmanches do "Caçador de Marajás". Estes, entre outras coisas, deixaram à deriva o cinema brasileiro na primeira metade dos anos 90. Na orfandade, Jabor se transformou num Paulo Francis piorado; um personagem de paródia, alimentado pela fúria rançosa e desmedida de suas opiniões, recorrência ao plágio de si mesmo e pronta negação de suas mais sinceras afirmações. Entretanto, marcou o cinema nacional com o excelente Tudo bem (1978), inteligente e bem humorada abordagem das contradições sociais brasileiras encenadas no interior em reformas de um apartamento de família decadente de classe média. Também traduziu com propriedade o espírito de Nelson Rodrigues em O casamento (1976) e Toda nudez será castigada (1973). Este é o filme da vez neste blog, numa apreciação de 1974 revista e ampliada em 1988. Vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim, é interessante e carregado ensaio sobre moral, sexo, castidade, fidelidade, promiscuidade, hipocrisia e luto — valores de profundos significados para a mentalidade média da família brasileira. Recentemente, 24 anos após o irregular Eu sei que vou te amar (1986), Jabor retornou à direção com A suprema felicidade (2010). Mas parece ter desaprendido as artes do ofício: os resultados foram constrangedores.







Toda nudez será castigada


Direção:
Arnaldo Jabor
Produção:
Roberto Farias, Arnaldo Jabor
R. F. Farias Produções Cinematográficas, Ventania Produções, Sagitário, Embrafilme
Brasil — 1972
Elenco:
Darlene Glória, Paulo Porto, Elza Gomes, Paulo Sacks, Paulo César Peréio, Isabel Ribeiro, Hugo Carvana, Henriqueta Brieba, Orazir Pereira, Sérgio Mamberti, Abel Pêra, Orlando Bonfim, Waldir Onofre, Mitota.



O cineasta Arnaldo Jabor


Esta é uma das mais felizes transposições de uma peça de Nelson Rodrigues para o cinema. Arnaldo Jabor, diretor e roteirista, evitou as armadilhas que cercam as adaptações do teatro para a tela e driblou espertamente o maneirismo e a linguagem exagerada do original, que soam tão falsos aos olhos e ouvidos do espectador cinematográfico. Mesmo assim, não superou a proeza de Leon Hirszman em A falecida (1965), ainda a melhor tradução do espírito nelsonrodrigueano para a sala escura.


Toda nudez será castigada é a confirmação do amadurecimento de Arnaldo Jabor. O cineasta vinha dos longas Opinião pública (1967)  documentário que persegue o modelo do cinema-verdade na tentativa de enquadrar o pensamento estereotipado do brasileiro médio em um grande centro urbano (Rio de Janeiro)  e Pindorama (1970)  retumbante fracasso que busca no Brasil dos primórdios da colonização portuguesa as respostas a algumas questões que assombram o país contemporâneo.


Sucesso de público e crítica, vencedor do Urso de Prata no Festival de Berlim de 1973, Toda nudez será castigada é um interessante e agudo ensaio sobre moral, sexo, castidade, fidelidade, promiscuidade, hipocrisia e luto, valores de profundos significados para a família média brasileira. No centro da trama está o empresário Herculano (Porto) à frente de um agrupamento formado por Patrício (Peréio) — o irmão parasita e mau-caráter —; a irmã apagada, Neneca (Ribeiro); duas tias solteironas (Gomes e Brieba); e o filho Serginho (Sacks) — adolescente casto e carola, educado em colégio interno.



A família de Herculano (Paulo Porto), de terno azul: à sua esquerda está  a incorporada Geni (Darlene Glória);  à esquerda da foto, o filho Serginho (Paulo Sacks); à direita, à frente, as tias interpretadas por Elza Gomes e Henriqueta Brieba (sentada); atrás, Patrício (Paulo César Peréio) e Neneca (Isabel Ribeiro), irmãos de Herculano


Herculano, inconsolável, chora a morte da esposa vitimada por câncer  enfermidade sempre recorrente em Nelson Rodrigues , a única mulher que conheceu, a quem, no leito de morte, jurou fidelidade eterna. Diante da dor do irmão, o interesseiro Patrício  com a intenção de faturar algum dinheiro  resolve devolvê-lo à vida. Acreditando que a salvação de Herculano é o sexo, convence-o a procurar Geni (Glória), cantora de cabaré de terceira categoria e prostituta. O viúvo recrimina o irmão e recusa terminantemente a proposta. À noite, no entanto, dá o braço a torcer e vai ao encontro da mulher, no prostíbulo.



Patrício (Paulo César Peréio) em confabulações com Geni (Darlene Glória)

Geni (Darlene Glória) e Herculano (Paulo Porto)


No primeiro contato, Geni e Herculano se entendem às mil maravilhas. Ela exalta a potência sexual do parceiro, capaz de “dar sete” num mesmo programa. Mas Herculano desperta de ressaca. Moralmente refeito, destrata a meretriz e exalta o caráter da esposa morta. Vai embora, mas logo volta implorando novos favores. Geni, instruída por Patrício, responde com: “Está pensando o quê? Piranha também é filha de Deus. Você só toca em mim casando, só casando”. Herculano se sente esnobado e também admirado com a desenvoltura de Geni  que lhe exibe os seios com a maior sem-cerimônia enquanto endereça chacotas à memória da falecida. Desorientado, toma atitude arrojada: tirá-la da zona o quanto antes. “Você vai sair daqui agora; não admito que vagabundo nenhum ponha a mão em você”. Completa dizendo que não está interessado em sexo, apenas no bem estar de Geni a quem promete arranjar emprego decente desde que ela não toque mais no nome da falecida. Mas a marafona insiste: “Comigo só casando, só casando”.


E agora, casar como? Em que situação ficará o juramento à falecida? O que pensarão os familiares, principalmente Serginho? Dividido, Herculano vai ao cemitério onde encontra o filho, recém-chegado do internato. O garoto, “menino de ouro” fechado em luto e morbidez, cobra fidelidade do pai ao juramento. Que fazer? A solução é o apelo à hipocrisia típica da mentalidade média brasileira. Herculano tenta convencer Serginho a viajar para, na ausência do rapaz, se arranjar com Geni. Prepara o cenário. Encontra a pretendente na rua. Aí mesmo resolve pedi-la em casamento. Ela explode em alegria. Realizará o sonho de toda mulher da vida. Herculano, sem perda de tempo, leva-a à casa da família. Mas frustra Geni. Quer tudo dentro dos conformes. Só a terá depois de casada. Geni arde em desejo; mas o personagem de Porto é categórico: o casamento primeiro, depois “vou deflorar você”, diz, não se cabendo de contentamento.



Geni (Darlene Glória) e Herculano (Paulo Porto)


A rua! Que local mais apropriado, brasileiramente correto, para pedir uma prostituta em casamento! Jabor navega no universo de Nelson Rodrigues, mas também maneja com propriedade categorias da antropologia do Brasil de Roberto DaMatta. Geni é da “rua”, “da vida”. Não é pedida em casamento dentro de casa, sede normal de tal ritual. Ela é da zona, não é da “casa”. Este é o espaço das mulheres de família. As testemunhas do pedido não são os familiares chegados, mas a massa anônima de transeuntes, gente que supostamente não tem nada com isso. Dessa oposição  também ligação  entre “casa” e “rua” se alimenta o filme. Quando fica sozinha na casa que Herculano dividia com a falecida, Geni abre janelas e descerra móveis. Simbolicamente, interage seu espaço de amplidão e ausência de limites com a intimidade do universo familiar. Dessa promiscuidade, ocultada pela hipocrisia, advirão consequências.



Herculano (Paulo Porto) e Geni (Darlene Glória) comemoram o pedido de casamento

Serginho, o queridinho das tias solteironas  que praticamente o educaram e a quem, ainda, adoram dar banho —,  apoia-se nelas e resolve não viajar. Por causa disso o casamento é adiado, para desconsolo de Geni, que grita dramaticamente: “Queria que nascesse um câncer em meu seio”. Depois, para se vingar, faz Herculano de cachorrinho e ameaça ir embora.


Acontece o inesperado: Serginho vai à casa do pai e descobre tudo. Enlouquece com o fingimento e a mentira. Corre desesperado. Entra em um botequim e se envolve numa briga. É preso. O “filhinho de papai”, branco, é atirado numa cela, em meio aos excluídos de sempre: pobres, negros, viradores, ladrões e malandros de todos os tipos. É onde desperta para a sexualidade ao ser currado pelo “ladrão boliviano” (Pereira), outro tipo da “rua” que afronta a segurança e estabilidade do lar e da família.


Serginho perdeu a inocência para desespero das tias e do pai. Quando descobre o que aconteceu ao filho, Herculano responsabiliza Geni. Ofendido, vai à polícia cobrar explicações ao delegado, um tipo comicamente autoritário — interpretado por um estupendo Hugo Carvana, lamentavelmente em curta aparição — que não dá a menor importância bola para o ocorrido. Abalada com o fato, Geni visita Serginho no hospital. Ele exige ficar a sós com ela. Humilha-a. Obriga-a a tirar a roupa para depois dizer: “Eu quero trair meu pai com a esposa dele”. Chama Herculano e consente no casamento sem esquecer de frisar: Geni é uma santa. Depois do matrimônio tudo muda, conforme a hipocrisia à brasileira. Uma tia (Gomes) repreende a outra (Brieba) por chamar Geni de puta, à mesa: “Geni deixou de ser mulher da zona. Nunca foi, aliás! É honestíssima, tanto que casou virgem”.



Herculano (Paulo Porto) e Geni (Darlene Glória)
Enfim, o casamento! Tudo muda, segundo os critério da classe média brasileira: "Geni deixou de ser mulher da zona. Nunca foi, aliás! É honestíssima, tanto que casou virgem"


Serginho começa a se vingar do pai. Transa com Geni sempre que pode. Cobre-a de amor e prazer. Ela se apaixona pelo enteado, mas não perde por esperar. No auge da relação é abandonada. Serginho foge com o “ladrão boliviano”. Geni testemunha tudo no aeroporto. Desesperada, essa personagem digna de tangos e boleros dá cabo da vida cortando os pulsos. Antes de falecer deixa para Herculano um testemunho gravado. Conta tudo. inicia a confissão de forma inquietante e humilhante: “Você pensa que sabe de tudo! Você não sabe de nada!”.



Vingando-se do pai:  Serginho (Sacks) se faz amante da madrasta Geni (Darlene Glória)

À beira da morte, Geni (Darlene Glória) grava desesperada confissão para Herculano (Paulo Porto)

  
A concepção cinematográfica de Toda nudez será castigada é das melhores. Condizente com a encenação há as interpretações propositadamente exageradas — mas adequadamente controladas pela direção  a cargo de atores impecáveis. O senão vai para Paulo César Peréio, mas a culpa não é do ator. Acontece que Patrício não é suficientemente aproveitado. 


O filme é dominado por cores fortes, próximas do berrante. A cenografia carrega na decoração dos interiores, principalmente das casas das tias e de Herculano. A trilha sonora explora bem a tragédia, o drama e o cômico, combinando temas de Astor Piazzola — uma “música de carreira”, a todo momento interrompida , Roberto Carlos e Erasmo Carlos, com o som estridente de programas radiofônicos de tom popularesco como A cidade contra o crime  que tanto marcou uma época. Porém, é exatamente no som que residem os maiores problemas. Às vezes é baixo demais, depois estoura descontrolado entre graves e agudos. Em seguida diminui, ficando próximo do inaudível.






Produção executiva: Paulo Porto. Roteiro: Arnaldo Jabor, com base em peça homônima de Nelson Rodrigues. Direção de fotografia (Eastmancolor) e câmera: Lauro Escorel. Cenografia e figurinos: Regis Monteiro. Associados à cenografia e figurinos: Emiliano ribeiro, Rubens Amorim. Montagem: Rafael Justo Valverde. Música: Astor Piazzolla (Fuga 9, Zum, Soledad); Detalhes, de Roberto e Erasmo Carlos; Cantata de Carmina Burana, de Carl Off; Do it to it, de Quincy Jones; Give my regardes to Broadway, de George M. Cohan e Al Johnson. Direção musical: Paulo Santos. Som: Alberto Viana. Direção de produção: Saul Lachtermacher, Abigail Pereira Nunes. Assistente de direção: Emiliano Ribeiro. Assistente de câmera: Ronaldo Nunes. Continuidade: Leilany Chediak. Equipe de produção: Flávio Guerra, Adiramar Galvão, Fernão Guerra, Joni Schlömer. Maquiagem: Ronaldo Abreu. Fotografia de cena: Renato Laclette. Eletricistas: Rui Medeiros, Eduardo Gomes. Maquinista: José Pinheiro. Som guia: Jair Duarte. Roupeira: Sônia Lígia. Costureira: Edméa Saldanha. Som: R. F. Farias. Técnico de som: Alberto Vianna. Efeitos sonoros: Geraldo José. Mixagem sonora: Somil. Laboratório de imagem: Líder. Trajes: Adonis. Produtor associado: Nélio Freire. Tempo de exibição: 102 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974; revisado e ampliado em 1988)