domingo, 21 de julho de 2013

OS FRÁGEIS DEUSES DE SANGUE E AREIA DE BLASCO IBAÑEZ SEGUNDO MAMOULIAN

Vigoroso na forma e no conteúdo, Sangue e areia (Blood and sand, 1941), de Rouben Mamoulian, é a segunda transposição para o cinema da novela Sangre y arena, de Vicente Blasco Ibañez. A primeira, de 1921, dirigida por Fred Niblo e estrelada por Rodolfo Valentino, adaptou superficialmente o original e passou ao largo da problemática social privilegiada pelo autor. Esta questão é básica na realização de Mamoulian. O toureiro, centralizado no personagem Juan Gallardo (Tyrone Power), é percebido como um deus de pés de barro, pronto a ser imediatamente sacrificado pela insaciável volúpia das massas e pelo oportunismo de jornalistas especializados em criar e destruir mitos. Oriundo dos setores empobrecidos, o matador conhece a glória quase sempre efêmera antes de perecer vitimado pelas próprias circunstâncias que o geraram. Dele não sobrarão vestígios. A areia sempre revolvida do piso das plazas não preserva pegadas, sequer o vermelho escuro do sangue derramado. A apreciação é de 1976.







Sangue e areia
Blood and sand

Direção:
Rouben Mamoulian
Produção:
Darryl F. Zanuck, Robert Kane
20th. Century-Fox
EUA — 1941
Elenco:
Tyrone Power, Linda Darnell, Rita Hayworth, John Carradine, Lynn Bari, Alla Nazimova, Anthony Quinn, J. Carrol Naish, Laird Cregar, William Montagu, Vincente Gómez, George Reeves, Pedro de Córdoba, Fortunio Bonanova, Victor Kilian, Michael Morris, Charles Stevens, Cora Sue Collins, Russel Hicks, Maurice Cass, Rex Downing, John Wallace, Jacqueline Dalya, Cullen Johnson, Larry Harris, Ted Frye, Schuyler Standish, Armillita, Monty Banks, Harry Burns, Cecilia Callejo, Lynne Carver, Maurice Cass, Paul Ellis, Esther Estrella, Mariquita Flores, Rosita Granada, Cullen Johnson, Kay Linaker, Fred Malatesta, Francis McDonald, Francisco Moreno, Alberto Morin, Gracilla Pirraga, Ann E. Todd.




O diretor Rouben Mamoulian



Os toureiros são estrelas passageiras, de brilho fugaz, que riscam o céu da Espanha. Semelhantes a novos gladiadores, fazem a alegria de uma plebe faminta e ignorante, tão carente de pão e circo como a similar da Roma imperial.


Para o jornalista Natalio Curro (Cregar) — figura emblemática de Sangue e areia —, o toureiro é um "cometa". Faz a comparação em artigo que enaltece o surgimento de Manolo de Palma (Quinn), novo valor das arenas, por volta do último quarto de hora do filme. Manolo pergunta ao cronista o significado do termo. Não tem tempo para ouvir a resposta. Mas parece saber que precisa correr, que conhecerá a glória por tempo muito breve. Logo, outro lhe tomará o lugar; outro cometa, segundo Curro.


O jornalista Natalio Curro (Laird Cregar): construtor e destruidor de mitos


O toureiro emerge dos setores populares e empobrecidos da Espanha. Sobe na escala social, mas permanece na ignorância. Coleciona prêmios, recebe aplausos, acumula riquezas, mas não consegue capitalizar sobre os louros das vitórias. Logo estará tão pobre como no inicio da carreira. Nacional (Carradine), integrante da equipe de Juan Gallardo (Power; Downing quando criança), é o único a manifestar consciência da fragilidade do fugaz herói das plazas. Denuncia o analfabetismo a que estão relegados, juntamente com as massas que os aplaudem. Ao morrer, vitimado por um touro, lamenta o fato de nunca ter aprendido a ler e a escrever. Sempre viveu na mais completa escuridão.


Nacional sabe: é impossível construir sobre areia. O material do centro das plazas, sempre revolvido de função em função, é frágil, incapaz de registrar por muito tempo as marcas dos pés que aí pisaram. Absorve e seca rapidamente o sangue que jorra das feridas que marcam os corpos dos toureiros. A areia serve de metáfora às vidas esfareladas de Nacional, Gallardo, Manolo, Garabato (Naish) etc. Estes, numa hora conhecem a mais completa evidência. Depois estarão condenados à mendicância e ao esquecimento. Suas imagens, como se feitas de areia, serão levadas pelo vento. Foi assim com Gallardo, pai do jovem Juan. Brilhou de forma intensa e rápida. Não soube preservar a fortuna recebida. Morreu na arena e deixou a família na miséria. Garabato termina esquecido e na sarjeta. Será contratado como serviçal de Juan no breve período de glória deste. Manolo será o próximo a reinar nas plazas. E assim se vai, de cometa em cometa.


A novela Sangre y arena, de Vicente Blasco Ibañez, enfoca criticamente o papel das touradas e dos toureiros na sociedade espanhola. Localiza a ação no final do século 19, época em que o matador experimentava a contradição entre a visão romântica de sua atividade e a modernização do país que ensaiava passos na trilha da valorização profissional segundo o espírito do capitalismo. Portanto, é num momento de transição que se passa a história. Esse dado é relevante, mas pouco importante para o filme que Mamoulian realizou com tintas trágicas. Aqui, o que mais conta é o fascínio que a profissão de matador exerce entre os pobres, principalmente rapazes e garotos. Para eles, tourear é praticamente a única possibilidade de ascensão social, acrescida do reconhecimento público angariado junto a amplas camadas da população.



Tyrone Power interpreta Juan Gallardo, o protagonista de Sangue e areia


Da pena de Ibañez surge o simplório Juan Gallardo. É uma força da natureza. Guia-se por rompantes e pela intuição, desprovido de qualquer tino profissional e empresarial. Vive apenas o momento imediato. O personagem foi visto nas telas pela primeira vez em 1922: Sangue e areia (Blood and sand) assinado por Fred Niblo e estrelado por Rodolfo Valentino.


O Sangue e areia de 1941 é vigoroso na forma e no conteúdo. Avança por questões complexas que a rapidez da versão silenciosa não permitiu abordar. Agora, o roteiro de Jo Swerling dá vazão a toda a atmosfera trágica do original de Ibañez, impregnado de fatalismo e religiosidade tipicamente espanholas. Tudo isso é realçado pela fotografia (premiada com o Oscar) de cores fortes e carregadas  com predominância do negro, vermelho, roxo e azul  a cargo da dupla Ernest Palmer e Ray Rennaham, bem como pela cenografia assumidamente barroca que explora motivos de pintores como Goya e El Greco. Digno de créditos é também o trabalho musical de Alfred Newman. Apesar de pouco original, conferiu a devida carga dramática a temas reconhecidamente espanhóis, dentre os quais La Virgen de Macarena, melodia alusiva à padroeira dos toureiros. Seus acordes vibrantes comentam o filme desde a apresentação dos créditos de abertura.


Sangue e areia acompanha a trajetória do pobre Juan Gallardo, órfão do toureiro de mesmo nome. Nascido em Sevilha, deixou-se fascinar, desde a infância, por assuntos ligados à plaza. Idolatra o pai — para ele, o homem mais corajoso das arenas. Está sempre pronto para defendê-lo de detratores, como Curro, em cuja cabeça desferiu uma garrafada devido a um comentário ofensivo. Juan é arrogante. Vive à noite. Perambula por tavernas, atento às conversas dos matadores, ou invade currais alheios para praticar a tauromaquia. É apaixonado por Carmem Espinosa (Darnell; Todd quando criança). Na companhia dos amigos Manolo, Sebastian, Pablo e Gonzales abandona a família e Sevilha. Parte para Madri em busca de melhores oportunidades. Antes da partida, Juan e Manolo brigam pelo direito de cavalgar a única montaria do grupo. O primeiro vence a disputa. Mas esta sequência revela mais que um simples entrevero. Oculta um comentário cruel: os amigos de Juan também querem ser toureiros. Muitos se candidatam, mas nem todos serão agraciados com talento e sorte. A plaza reconhece, num só tempo, o brilho de poucas estrelas. Juan será entronizado primeiro; depois dele, Manolo. Os outros terão que se contentar nos papéis de membros secundários das equipes.


Dez anos depois os companheiros retornam a Sevilha. Juan traz presentes para familiares e amigos. É estrela em ascensão, apesar de violentamente criticado em artigo de Curro. Mas continua analfabeto, ingênuo, impulsivo e fácil de ser enganado. Sabe da matéria ao perceber o próprio retrato publicado pelo jornal. O passageiro do trem que lhe lê a notícia, sem coragem de dizer a verdade, transforma o ataque impresso em elogio. Mais tarde, o orgulho de Juan cai por terra ao reencontrar Carmem. Ela recompõe a fidelidade ao artigo. Esses dois momentos comentam a percepção limitada do toureiro — impossibilitado de conhecer até mesmo aspectos tornados públicos de sua vida e de seu caráter. Não obstante, Juan é a estrela da vez. Logo estará no auge, casado com Carmem e habitando palacete no centro de Sevilha, junto com a mãe, Senhora Angústias (Nazimova), a irmã Encarnación (Bari) e o marido desta, Antônio Lopez (Montagu). Encarnación e Antônio fazem parte da corte de parasitas que circula em torno de Juan. Sua casa está sempre cheia de jornalistas, apaniguados, afilhados, compadres, parentes, oportunistas, interesseiros e bajuladores que só desejam sugá-lo. É o preço da fama. Mas Gallardo sente o maior prazer em ser o centro das atenções. Será tarde quando se arrepender.



O amor de infância de Juan Gallardo (Tyrone Power): Carmen Espinosa (Linda Darnell)

Recém-casados: Carmen Espinosa (Linda Darnell) e Juan Gallardo (Tyrone Power)


O processo de decadência começa quando Juan se deixa seduzir pela rica, fatal, fútil e caprichosa Dona Sol, interpretada pela exuberante Rita Hayworth[1]. A atriz antecipa o sorriso e os cabelos da personagem-título de Gilda (Gilda, 1946), de Charles Vidor. Por ela Juan esquece Carmem, que mais tarde o abandona. Deixa também de administrar a carreira. De tão simplório não percebe que é apenas um brinquedo para a amante entediada. Ela o descarta quando o jogo perde a graça. A distância social entre Juan e Dona Sol é cruelmente explicitada na sequência do banquete: o toureiro simplório e bronco se revela por completo diante da aristocracia de gostos e modos refinados.


Juan Gallardo (Tyrone Power) nas mãos da caprichosa Dona Sol (Rita Hayworth)


De outro lado, o flanco que Juan deixou aberto na arena começa a ser ocupado por Manolo de Palma. O personagem de Power experimenta o processo de queda, do qual não terá volta. Angustiado pelos revezes afetivos e financeiros, descuida-se durante uma função e provoca a morte de Nacional. Curro, que tantas carreiras impulsionou — e destruiu — em seus artigos, antecipa cruelmente o trágico canto de cisne de Juan. O jornalista é a síntese esclarecida da massa selvagem, faminta, ignara e agressiva. Interessa-se apenas pelo brilho e continuidade do espetáculo, nada mais.


Juan chega ao fim, abandonado por todos, exceto Carmem  que volta por amor e para lhe dar apoio  e pela Senhora Angustias. Esta lhe arma o espírito para receber o pior que, sabe, virá muito em breve. Passou por processo semelhante quando perdeu o marido. Conforme o previsto, Juan é mortalmente ferido. Ironicamente, instantes antes, reconheceu efêmero retorno aos dias de glória. O público, que o tratara de forma tão feroz e desapiedada, aclamou-o como nunca. Curro se viu obrigado a fazer coro ao apelo da massa. Juan morre na capela da plaza, amparado por Carmem. Lá fora, o público volúvel como areia já o esqueceu. Extasiado, aplaude a atuação de Manolo de Palma, saudado por Curro como “O primeiro homem do mundo”. A câmera enquadra o matador em sua glória. Depois, afasta-se para focalizar o que ninguém quer perceber: a areia ainda tingida pelo sangue fresco de Juan.


Juan Gallardo (Tyrone Power) no leito de morte de National (John Carradine)


Sangue e areia é brilhante, um drama vigoroso como raramente se viu. Pena ter sido tão mal recebido quando lançado. Muitos não compreenderam o significado e o contexto da história. Simplesmente o classificaram, pejorativamente, de dramalhão ou novelão. Outros lamentaram a ausência de romantismo no personagem de Juan, quando ele, de fato, não deveria ostentar essa característica que o esvaziaria por completo. Tyrone Power, ator de recursos limitados, não decepciona. Brilhara um ano antes sob as ordens de Mamoulian numa das mais gostosas películas de aventura, o hoje clássico A marca do zorro (The mark of Zorro).



Dona Sol (Rita Hayworth) na manipulação de Juan Gallardo (Tyrone Power)

Juan Gallardo (Tyrone Power), um joguete das circunstâncias impossíveis de controlar


Mas as maiores polêmicas em torno de Sangue e areia foram provocadas pelo Technicolor, que não teve pudor em abusar de cores fortes e carregadas. Para os mais críticos, o recurso significou uma clara adesão ao mau gosto. Outros, mais acertadamente, reconheceram na opção um apoio à dramaticidade exigida pelo filme. Cabe ressaltar que o Technicolor não era estranho a Mamoulian. O cineasta dirigiu, em 1935, o primeiro filme a empregar o sistema: Vaidade e beleza (Becky sharp).






Roteiro: Jo Swerling, baseado na novela Sangre y arena, de Vicente Blasco Ibañez. Produtor associado: Robert T. Kane. Direção de fotografia (Technicolor): Ernest Palmer, Ray Rennaham. Direção de Technicolor: Natalie Kalmus, Morgan Padelford. Música: Alfred Newman. Guitarras: Vicent Gomez. Direção de arte: Richard Doy, Joseph C. Wright. Decoração: Thomas Little. Coreografia: Hermes Pan. Cenas de multidão e consultoria técnica: Budd Boetticher. Montagem: Robert Bischoff. Costumes: Travis Banton. Jóias: Flaty. Som: W. D. Flick, Roger Herman. Ilustrações: Carlos Ruano Lopis. Tempo de exibição: 123 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1976)




[1] Interpretada por Alla Nazimova na versão de 1922.