domingo, 1 de dezembro de 2013

O ESTRANHO E ESQUECIDO WESTERN 'NOIR' DE ROBERT WISE

Egresso dos quadros técnicos da RKO Radio, Robert Wise ganhou reputação na edição sonora e de imagens. Participou das equipes de montagem de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e do vilipendiado Soberba (The magnificent Ambersons, 1942), ambos de Orson Welles. Não demorou a se notar como realizador, inicialmente de bem sucedidas produções B até deixar marca em filmes como Punhos de campeão (The set-up, 1949), O dia em que a Terra parou (The day Earth stood still, 1951), Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, 1956), Quero viver (I want to live, 1958), Homens em fúria (Odds against tomorrow, 1959), Amor sublime amor (West side story, 1961) e A noviça rebelde (The sound of music, 1965). De seus primeiros anos na direção consta o estranho e praticamente esquecido Sangue na Lua (Blood on the Moon, 1948). É um western psicológico filmado quase que exclusivamente à noite, influenciado pelo cinema noir na composição do personagem principal e na concepção do ambiente à sua volta. Robert Mitchum é o dividido Jim Garry, pistoleiro sem convicção e em crise de valores, lançado pelas circunstâncias no centro de um conflito fundiário no período imediatamente posterior à Guerra de Secessão.







Sangue na lua
Blood on the Moon

Direção:
Robert Wise
Produção:
Sid Rogell, Theron Warth
RKO Radio Pictures
EUA — 1948
Elenco:
Robert Mitchum, Barbara Bel Geddes, Robert Preston, Walter Brennan, Phyllis Thaxter, Tom Tully, Frank Faylen, Charles McGraw, Clifton Young, Tom Tyler, George Cooper, Richard “Ted Keene” Bowers, Bud Osborne, Zon Murray, Robert Bray.



O diretor Robert Wise


Depois do início profissional como assistente de contabilidade na RKO Radio, Robert Wise integra a equipe de montagem da companhia. Faz a edição sonora de O delator (The informer, 1935), de John Ford. Seu nome não consta dos créditos, mas os resultados são motivo do maior orgulho[1]. O filme envelheceu em alguns aspectos, mas a qualidade do tratamento sonoro permanece irretocável.


No começo dos anos 40, ainda na RKO, Wise participa da equipe de Orson Welles. Coordena a montagem de Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941) e permanece com o diretor em Soberba (The magnificent Ambersons, 1942). Antes de editá-lo, Welles viaja ao Brasil onde realizará Tudo é verdade (It’s all true, 1942). Na sua ausência, diante da pressão da RKO para terminar o filme, Wise assume sozinho a montagem. Na primeira tentativa, seguindo instruções telegrafadas de Welles, deixa Soberba com 131 minutos. A companhia recusa. A remontagem exclui 43 minutos. O fino andamento narrativo planejado pelo diretor é irremediavelmente prejudicado; a elaborada trilha musical de Bernard Hermann é alterada. Frustrado, o compositor pede a remoção de seu nome dos créditos. O material extirpado parece estar definitivamente perdido. Soberba tem poucas chances de ser apreciado na forma pensada por Welles. A partir daí esfriam as relações entre montador e diretor. Provavelmente, o amargurado Welles preferiu não compreender a posição de Wise, apenas um empregado da RKO, portanto obrigado a fazer o que lhe ordenavam.


Seguindo na RKO, Wise trabalha com o produtor Val Lewton. Este especialista do “terror de sugestão” lhe dá oportunidade de dirigir. Assim, assina com Gunther Fritsch A maldição do sangue de pantera (The curse of the cat people, 1944). Para Lewton também faz Mademoiselle Fifi (Mademoiselle Fifi, 1944) e O túmulo vazio (The body snatcher, 1945). Wise se consolida na realização. Dirige filmes de valor: Punhos de campeão (The set-up, 1949) confronta dignidade e corrupção no mundo do boxe; Marcado pela sarjeta (Somebody up there likes me, 1956) retorna aos ringues e às luvas para biografar Rocky Graziano — magnificamente interpretado por Paul Newman em início de carreira; Quero viver (I want to live, 1958) é forte e insuperável libelo contra a pena de morte; Homens em fúria (Odds against tomorrow, 1959), outro libelo, investe contra a intolerância racial valorizado pela música do Modern Jazz Quartet, pela fotografia em preto-e-branco de Joseph Brun e pela montagem de Dede Allen.



Barbara Bel Geddes e Robert Mitchum em foto promocional de Sangue na lua


Em 1961 Wise se associa ao coreógrafo Jerome Robbins. Oxigenam o musical com Amor sublime amor (West side story), transposição de Romeu e Julieta, de William Shakespeare, para os guetos de Nova York com danças feéricas, tomadas nas ruas e doses inéditas de realismo social em se tratando de uma grande produção do cinema americano.


Também abrilhantam a filmografia de Wise: O dia em que a Terra parou (The day Earth stood still, 1951), ficção científica que alerta para os perigos da corrida nuclear; o western Honra a um homem mau (Tribute to a bad man, 1956); e, O enigma de Andrômeda (The Andromeda strain, 1971), retorno à ficção científica. É uma pena que o grande público só se lembre de Robert Wise como o diretor de A noviça rebelde (The sound of music, 1965), musical divertido e agradável mas aparentemente um retrocesso na carreira de quem realizara o revolucionário, para a época, Amor sublime amor.


Robert Mitchum é Jim Garry, pistoleiro sem convicção num Oeste noir


E o que dizer de Sangue na lua? Infelizmente, não figura entre os favoritos de Robert Wise. Ele, quando rememora a filmografia, passa batido pelo título. Em geral, também a crítica não nutre grande apreço pelo filme. Sangue na lua é, desde o lançamento, uma obra estranha dada a sua concepção. É um western psicológico tingido por referências do cinema noir. Desenvolve a trama quase que somente à noite. Traz Robert Mitchum interpretando Jim Garry, papel sob medida para a expressão céptica e difícil do ator. É um desgarrado, um personagem complexo, atormentado por contradições e crises de valores.


Pouco se sabe do seu passado. Até há pouco era rancheiro. Mas, como diz, perdeu as terras, apesar de lutar até o fim para mantê-las. O filme não fornece informações precisas sobre a época e a ambientação. A história se passa, provavelmente, ao sul do oeste estadunidense no imediato pós Guerra de Secessão — período de forte especulação e concentração fundiárias. Basicamente é esse o assunto da trama. O conflito opõe, de um lado, o grileiro Tate Rilling (Preston) tentando se apossar da maior quantidade de terras que conseguir e, do outro, John Lufton (Tully), pequeno criador de gado, pai da decidida Amy (Bel Geddes)  que o apoia incondicionalmente  e de Carol (Thaxter)  que o trai, seduzida por Rilling, acreditando que faz o melhor pela família.



Jim Garry (Robert Mitchum) e Jake Pindalest (Frank Faylen)


Contra Lufton, Rilling engaja os pequenos rancheiros. Ilude-os com promessas de benefícios, mas pretende desalojá-los tão logo atinja seus objetivos. É apoiado financeiramente por Jake Pindalest (Faylen), corrupto agente federal responsável pela reserva índia das proximidades. Rilling fortalece sua posição contratando pistoleiros: Frank Reardon (Tyler), Joe Shotten (Young) e Jim Garry.


Rilling conheceu Jim durante a guerra. Sabe de sua perícia com as armas e das dificuldades que enfrenta. Promete recompensá-lo com 10 mil dólares. Servir de pistoleiro não agrada a Jim, ainda mais para Rilling, que representa tudo o que mais odeia. Mas a generosa quantia poderá resolver muitos problemas seus. Diante disso, tenta aplacar as pressões da consciência. Não consegue. De imediato percebe que é justa e legítima a resistência de Lufton e que os rancheiros são utilizados como bucha de canhão. Perderão as terras; passarão por processo idêntico ao que viveu.


Mas a questão central na concepção do personagem de Jim Garry é a sensação de se sentir no limbo. Não tem lar, destino, estabilidade e onde se agarrar. Essa situação gera desconforto, desde que se instala no centro do conflito fundiário do qual, a princípio, desconhece maiores detalhes. É olhado com desconfiança por todos, a começar por John Lufton e Amy: acertadamente, desde o início,  suspeitam que se trata de um pistoleiro de Rilling. Depois, é com os homens do chefe que não se entrosa: inicialmente pensam que é um agente de Lufton.



Jim Garry (Robert Mitchum) é um pistoleiro no limbo


Mais interessante é o autoestranhamento de Jim. Suas dúvidas e incongruências, somadas à insegurança advinda do fato de não ter lugar e de não ser reconhecido e aceito em nenhum outro, são o ponto forte de Sangue na lua. Isso explica a ambientação noturna que impregna a maior parte da narrativa e a relação com o noir: Jim não encontra estabilidade moral, afetiva e psicológica nos espaços pelos quais transita. Acompanham-no o incerto, o dúbio e o aparente. Está em crise num mundo conflagrado.


O personagem tenta a reconciliação consigo mesmo. Primeiro passo: recompor a estrutura moral. Aos poucos se afasta de quem o contratou. Busca identificação com Chris Barden (Brennan), velho rancheiro que perde o filho Fred (Cooper) no estouro da boiada de Lufton, ordenado por Rilling. Jim transmite a triste notícia a Chris e lhe oferece solidariedade. Mas o abalado e condoído pai ironiza a manifestação de quem acredita ser apenas um pistoleiro de sangue frio. Apesar da rudeza do encontro, Jim percebe no vazio de Chris a mesma sensação de perda que o invadiu quando foi despojado de tudo o que possuía.


Depois, na cidade, os valores de Jim são outra vez postos à prova. John Lufton e Amy chegam e se dirigem a ele de modo desafiador, cobrando responsabilidades pelo estouro da boiada. Mas não encontram resposta às admoestações que lançam. Surpreendem-se quando Jim se põe a defendê-los contra as ameaças de Frank Reardon e Joe Shotten, que manifestam intenção de matá-los. Terminada a cena, Lufton diz: “Não entendo Garry, não entendo mesmo”. Mais perspicaz que o pai, Amy deixa escapar o agradecimento e um pedido de desculpas pelo mau juízo que fizera do recém-chegado. Este resume o insólito da situação que vivencia respondendo: “Não se deixe impressionar pelas aparências”.



Barbara Bel Geddes no papel de Amy


Jim Garry (Robert Mitchum), Amy (Barbara Bel Geddes) e John Lufton (Tom Tully)

Jim Garry (Robert Mitchum) confronta os pistoleiros que ameaçam os rancheiros

  
Jim resolve partir. Quer deixar para trás um conflito do qual nunca deveria ter tomado parte. Novamente é admoestado pela crise moral. Rilling o alcança, prevenido por Reardon. Testa-lhe a fidelidade. O personagem vivido por Robert Mitchum recusa a função de pistoleiro e acusa o ex-chefe e companheiro de tramar contra os rancheiros. O desentendimento resulta em briga a socos. Rilling é posto fora de combate. Mas o desarmado e atordoado Jim está sob a mira de Reardon, pronto para ser covardemente assassinado. É salvo por Chris. Agora, mais que nunca, por menos que queira, Garry está envolvido com o conflito. Tem responsabilidades morais com os rancheiros. Ao regressar ao front, como aliado dos pequenos proprietários, encontra dificuldades para ser aceito, mas Amy o ajuda a superar a desconfiança de John Lufton. Juntos preparam o contra-ataque a Rilling. Em outra frente, Jim tenta desmobilizar Jake Pindalest, fonte de recursos do grileiro. Esfaqueado e quase morto, busca socorro no rancho de Chris Barden. Avisada do fato, Amy parte para ajudar. Mas Rilling, Pindalest e alguns pistoleiros cercam o lugar. Segue-se o tiroteio. Apesar do ferimento, Jim consegue se erguer. Encoberto pela noite, desmobiliza Pindalest. Confronta Rilling, ferindo-o mortalmente. Antes de falecer, o grileiro marca a diferença entre ele e o ex-companheiro: “Ao contrário de mim, você sempre teve consciência e isso atrapalha”. Lufton e seus homens chegam quando o pior estava terminado. Fecha-se o círculo. Jim Garry  completou o percurso da queda para a redenção. Recompôs-se moralmente, salvou a integridade do seu eu vilipendiado. Agora é a reconciliação afetiva com Amy e a reconquista do lugar que lhe cabe no mundo.


Jim Garry (Robert Mitchum) confronta  Jake Pindalest (Frank Faylen)


São dignas de destaque a música de Roy Webb e a fotografia noturna de Nicholas Musuraca. Os senões mais evidentes ficam por conta da má utilização das backprojections, principalmente na sequência do estouro do gado.




 Roteiro: Lillie Hayward, com base em novela de Luke Short. Adaptação: Luke Short, H. Shumate. Direção de fotografia (preto-e-branco): Nicholas Musuraca. Direção de arte: Albert S. D’Agostino, Walter E. Keller. Efeitos especiais: Russell A. Chilly. Decoração: Darrell Silvera, James Altwies. Supervisão de maquiagem: Gordon Bau. Música: Roy Webb. Direção musical: C. Bakaleinikoff. Montagem: Samuel E. Beetley. Som: John L. Cass, Terry Kellum. Figurinos: Edward Stevenson. Assistente de direção: Maxwell O. Henry. Produção executiva: Sid Rogell. Tempo de exibição: 88 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1998)



[1] Em entrevista a Sérgio Augusto, Robert Wise confessou “seu maior orgulho: ter montado o som de O delator” AUGUSTO, Sérgio. Conversa com um discípulo de Welles. Folha de São Paulo. São Paulo, 9 jun. 1987. Ilustrada.