domingo, 30 de março de 2014

CHAPLIN TENTA ENQUADRAR O MARIDO MULHERENGO EM ALUCINADO PASTELÃO DA KEYSTONE

Um dia complicado (A busy day) é o décimo quarto filme protagonizado por Charles Chaplin em 1914, ano em que estreou no cinema e na Keystone de Mack Sennett. Até 1970 foi dado como perdido. Não se sabe exatamente quem o dirigiu. Atualmente, tem valor essencialmente histórico. Resiste como curiosidade ao cinéfilo interessado nos primórdios do desenvolvimento da narrativa e da linguagem cinematográficas bem como no modo apressado e descuidado de se fazer filmes, típico do período e principalmente da Keystone. Chaplin, ainda distante de Carlitos, interpreta uma megera enciumada, afoita e agressiva na tentativa de enquadrar o marido mulherengo durante uma festa cívica. Com duração de apenas 6 minutos, é exemplo bem acabado de comédia pastelão com movimentação contínua e ritmo acelerado do início ao fim.






Um dia complicado
A busy day

Direção:
Mack Sennett
Produção:
Mack Sennett (não creditado)
Keystone Film Company
EUA — 1914
Elenco:
Os não creditados Charles Chaplin, Mack Swain, Phyllis Allen, Ted Edwards, Billy Gilbert, Mack Sennett.




A apreciação credita a Mack Sennett a direção de Um dia complicado.
Mas há controvérsias sobre a real identidade do realizador.
Seria Mack Sennett, Mabel Normand, Charles Chaplin ou George Nichols?


A direção desta rasgada e rápida comédia maluca com pouco mais de 6 minutos de duração costuma ser atribuída a Charles Chaplin. Assim registra o estudo de Carlos Heitor Cony[1]. Porém, registros da companhia Keystone e do próprio criador de Carlitos não confirmam a informação. Provavelmente, então, os créditos pela realização podem ser do próprio Mack Sennett ou da temperamental Mabel Normand, que volta e meia batia o pé e assumia a condução de alguns filmes da empresa — para desespero de Sennett e do próprio Chaplin. No entanto, segundo informações veiculadas pelo Internet Movie Data Base (Imdb)[2], George Nichols — espécie de gerente e faz tudo da Keystone — pode ser o titular da produção.


Um dia complicado foi dado como perdido até 1970, quando uma cópia razoavelmente bem preservada, em suporte do perigosamente inflamável acetato, foi encontrada. É um exemplo de produção cinematográfica de valor puramente histórico. Resiste apenas como curiosidade ao cinéfilo interessado nos primórdios do desenvolvimento da narrativa e da linguagem cinematográficas, bem como no modo descuidadamente apressado, a toque de caixa, de se fazer filmes, típico não somente da Keystone mas de boa parte da produção do período. Na ocasião, o cinema era uma diversão assumidamente popular, para não dizer popularesca. Os primitivos estúdios filmavam a todo vapor, operando azeitadas e contínuas linhas de montagem para abastecer os nicklodeons e feiras de variedades em seus fornecimentos de diversão de consumo fácil aos apetites pouco burilados das classes trabalhadoras. O cinema ainda estava distante dos seus períodos mais glamourosos. Mesmo assim, Chaplin já era atração, espécie de coqueluche do público a antecipar a loucura do star system. Mais de uma vez apelou ao recurso de se vestir de mulher para escapar do assédio de fãs mais aguerridos. Parte dessa experiência de efeminação é aproveitada em Um dia complicado. Assim, não deve o espectador, ainda mais o hodierno, estranhar o que parece ausência de Chaplin neste filme do qual é astro. Ele marca presença, sim, vestido de mulher e interpretando uma megera, de forma até convincente não fossem os trejeitos da comédia pastelão, repletos de grosseria, que é obrigado a incorporar.




Acima, ao centro e abaixo: um travestido Charles Chaplin é a ciumenta e grosseira megera de Um dia complicado


Um dia complicado traz o primeiro personagem feminino de Chaplin. Repetirá a proeza também em 1914, no vigésimo quarto título que protagonizou para a Keystone: The masquerader, o qual também dirigiu. Porém, nessa realização de aproximadamente 10 minutos, as particularidades biológicas do sexo oposto estão excluídas. Ele vive apenas um ator desleixado e mulherengo. De tanto aprontar, estragou o filme no qual atuava. Despedido, retorna disfarçado de mulher.


Realizado no incrível tempo de apenas 120 minutos, Um dia complicado é, certamente, o melhor exemplo do método Keystone de filmar. É o décimo quarto filme que Chaplin estrelou para a companhia de Mack Sennett. Como no plot de Corrida de automóveis para meninos (Kid auto races at Venice, 1914) — segundo título no qual atua — seu personagem volta a atrapalhar as atividades de uma equipe de filmagem. Mas, além disso, intromete-se de forma comprometedora em um evento inteiro. Tomando emprestadas as roupas e adereços de Alice Davenport[3], atriz da Keystone, Chaplin faz a esposa muito ciumenta e agressiva de um homem (Swain) flagrado no flerte a outras mulheres quando o casal assistia a um desfile cívico.


O marido (Mack Swain) e a enciumada esposa (Charles Chaplin) durante um evento cívico

Mack Swain  (à esquerda) é o mulherengo marido da megera (à direita) interpretada por Charles Chaplin


Tal qual a corrida de automóveis do título referido, o desfile é exemplo de acontecimento real acintosamente instrumentalizado como motivo e/ou pano de fundo para a encenação dos atos burlescos da Keystone. É incrível o que fazem equipe e atores, sem a menor cerimônia, em meio aos eventos ou posicionados junto ao público que os acompanhava. A fórmula é simplória. A destrambelhada mulher saltita, cai, chuta, rodopia, corre, agride com o guarda-chuva não apenas o marido, mas a todos que, de certo modo, interferem nos laços sagrados do seu matrimônio. Da plateia a baderna descamba para os bastidores do evento e se intromete no meio dele. Depois de atrapalhar a equipe de filmagens, o personagem de Chaplin — como não poderia deixar de ser — apronta com a polícia à base de chutes no traseiro. Tudo termina à beira do cais, onde o público se acotovela para prestigiar uma regata. No empurra-empurra resultante das tentativas de enquadrar o marido, a mulher é lançada ao mar — momento em que o filme termina.


Ao final, depois de muita confusão, a megera (Charles Chaplin) é lançada ao mar


As tomadas, com câmera invariavelmente fixa, captam planos de conjunto ou em meia distância conforme o figurino generalizado da época, excluídas, claro, as experimentações de David Wark Griffith em realizações que culminariam em O nascimento de uma nação (The birth of a nation, 1914) e, consequentemente, em novas maneiras de comunicar as histórias contadas pelo cinema.


A megera (Charles Chaplin) enquadra o marido mulherengo (Mack Swain) diante da câmera e em meio a um desfile cívico


Uma apreciação com excesso de má vontade classificaria Um dia complicado como mero exercício de rotina. Mas algo se destaca. É a maneira, ainda rudimentar, encontrada pela Keystone, de dar vazão a um primitivo trabalho de edição. As filmagens acontecem em dois locais razoavelmente distantes — mas nos quais os personagens se movimentam praticamente sem sofrer solução de continuidade. Após os reordenamentos possibilitados pela montagem, os cenários parecem contíguos: a avenida de Los Angeles na qual acontece o desfile e o cais onde a acontece o epílogo.


Outra qualidade a destacar é o ritmo. A "peteca" não cai depois de lançada. A aceleração no desenvolvimento das ações é mantida do início ao fim. Ao espectador contemporâneo  que desconhece as mudanças acontecidas na forma de se fazer cinema e no gosto dos espectadores  tudo pode soar muito pueril e despropositado. Mas com alguma boa vontade verá que o filme cumpre razoavelmente bem a tarefa de oferecer diversão descompromissada a um público em tudo distante das exigências, por assim dizer, mais sofisticadas das plateias de hoje.



A megera (Charles Chaplin) interrompe as filmagens, briga com a polícia e perturba um evento cívico
À direita, o marido interpretado por Mack Swain


Um dia complicado traz a terceira colaboração de Mack Swain com Chaplin. Ele foi, provavelmente, o melhor suporte do criador de Carlitos nos tempos da Keystone. Atuaram juntos pela primeira vez em Bobote em apuros (Caught in a cabaret, 1914); a seguir em Caught in the rain (1914).


O jovem Charles Chaplin


Argumento: Charles Chaplin (não creditado). Direção de fotografia (preto-e-branco): Frank D. Williams (não creditado). Montagem: Charles Chaplin (não creditado). Tempo de exibição: 6 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1994)



[1] CONY, Carlos Heitor. Charles Chaplin. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 58.
[2] A BUSY day. <http://www.imdb.com/title/tt0003733/combined>, acessado em 12 ago. 1994.
[3] CONY, Carlos Heitor. Op. cit. p. 58.