domingo, 29 de junho de 2014

O OLIGARCA ESCLARECIDO DO NORDESTE BRASILEIRO E DAS LINHAS DE COSTURA

Esta apreciação de 1979 aborda o misto de ficção e documentário dedicado por Geraldo Sarno a uma das personalidades mais emblemáticas e desconhecidas da recente história do Brasil. Coronel Delmiro Gouveia (1978) é o segundo longa-metragem do premiado realizador, tarimbado na exposição cinematográfica de diversos motivos que fazem a peculiaridade cultural do Nordeste brasileiro. Delmiro Gouveia ressurge, na interpretação de Rubens de Falco, como um homem à frente de seu tempo e dos mesquinhos interesses do setor social ao qual pertencia. Visionário e pioneiro da industrialização do país, contrariou interesses locais e estrangeiros, principalmente de capitalistas ingleses. Terminou assassinado em circunstâncias nunca esclarecidas. A envolvente reconstituição de Geraldo Sarno busca inspiração na literatura de cordel e no melhor cinema de aventuras, principalmente do western. Coronel Delmiro Gouveia não tem a inútil e tola pretensão de descobrir A VERDADE sobre o personagem. Como em Rashomon (Rashômon, 1950), de Akira Kurosawa, e Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), de Orson Welles, parte de pontos de vista contraditórios para lançar luzes questionadoras sobre uma história feita no cruzamento do mito com a realidade.







Coronel Delmiro Gouveia

Direção:
Geraldo Sarno
Produção:
Thomas Farkas, Carlos Del Pino, Geraldo Sarno
Saruê Filmes Ltda, Embrafilme, Thomas Farkas Filmes Culturais
Brasil — 1978
Elenco:
Rubens de Falco, Jofre Soares, Nildo Parente, Isabel Ribeiro, Sura Berditchevsky, José Dumont, Conceição Senna, Magalhães Graça, Denis Bourke, Harildo Déda, Álvaro Freire, Maria Alves, Maria Adélia, Henrique Almeida, João Gama, Carlos Wilson, Sue Ribeiro, Hélio Guerra, Jota, Tonica, Dona Filinha, S. João Edmeias.


O realizador Geraldo Sarno


Os brasileiros em geral pouco sabem de personalidades como Lampião, Padre Cícero, Zumbi e Antônio Conselheiro. Mas em conversas esparsas as imagens desses homens ressurgem carregadas de mitificação. De certo modo são figuras faladas em todos os cantos do país. Já Delmiro Gouveia não tem tanta sorte. Sua lembrança é mais matizada e localizada, restrita a alguns rincões do sertão nordestino e à memória de uma geração que desaparece por força do tempo. O esquecimento paulatino lhe envolve a imagem. Para a história oficial é mais um que não conta.


Coronel Delmiro Gouveia, de Geraldo Sarno, tem o mérito inicial de lançar luz sobre a figura esmaecida do personagem. É o segundo longa do diretor. O primeiro, O Sítio do Pica-Pau Amarelo, de 1974, decepcionou crítica e público. Entre esses dois títulos se interpõe o média-metragem Iaô (1976).


Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) junto aos trabalhadores que amparou
Zé do Pó (José Dumont) é o terceiro, de pé, a partir da esquerda


Desde a realização de Viramundo, em 1964, Sarno se especializou no documentário curto, privilegiando temas de extração quase que exclusivamente nordestina: Auto da vitória (1966), Dramática popular (1968), Vitalino/Lampião (1969), Jornal do sertão (1970), O engenho (1970), Casa de farinha (1970), Viva Cariri (1970), A cantoria (1970), Padre Cícero (1970), entre outros, são trabalhos que lhe deram fama e prêmios em festivais.


Rubens de Falco como o Coronel Delmiro Gouveia


Coronel Delmiro Gouveia se vale do talento do documentarista aliado ao conhecimento adquirido sobre o Nordeste brasileiro. Não se ocupa com a simples descrição dos fatos, como um documentário cinematográfico objetivo e impessoal sobre uma das figuras mais emblemáticas que o Brasil conheceu e esqueceu. Ao dado extraído da realidade, adiciona-se o ficcional carregado de emoção. Esses elementos reunidos fazem de Coronel Delmiro Gouveia um filme de reconstituição factual, mas também é bem urdida e exemplar epopeia influenciada pela literatura de cordel e pelo cinema de aventuras, particularmente o western. Aliás, uma das melhores sequências do filme é claramente calcada nas cavalgadas do gênero que André Bazin classificou de "Cinema americano por excelência": o coronel Ulisses Luna (Soares) galopa à frente de seus homens para libertar Delmiro Gouveia (Rubens de Falco), preso por ordem do Governador do estado de Pernambuco. Ao longo do trajeto, das encruzilhadas e encostas, outros cavaleiros se incorporam à comitiva, como se essa fosse um rio de volume sucessivamente aumentado pela contribuição dos afluentes. A sequência revela o talento de Geraldo Sarno não apenas como documentarista; também é um cineasta na verdadeira acepção do termo — um artista que confere vida e sabor às imagens que encena.


Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) com o sócio e amigo  Lionello Lona (Nildo Parente)

  
Delmiro Gouveia nasceu em 1863 e foi assassinado a tiros quando repousava na varanda de sua casa em Pedra[1], Alagoas, em 10 de outubro de 1917. A morte permanece envolta em mistério. Não se sabe dos mandantes e executores. Segundo muitas versões, foi morto por se opor às pretensões de industriais estrangeiros, ingleses acima de tudo, por causa de seu nacionalismo intransigente. Ao longo de sua atribulada vida contrariou vários interesses e colecionou diversos inimigos. Recebeu muitas juras de morte. O personagem recuperado no roteiro de Geraldo Sarno e Orlando Senna é, ao mesmo tempo, temperamental, autoritário, arrogante e impulsivo. Como todo bom potentado de matriz oligárquica do Brasil, não somente do Nordeste, recorria à violência como recurso final para salvaguardar suas posições. Entre as histórias que contam, agrediu a bengaladas o Vice-Presidente da República Rosa e Silva em plena Rua do Ouvidor, Rio de Janeiro. Também não vacilou em renegar a esposa, trocando-a pela mais jovem Eulina (Berditchevsky), filha adotiva do Governador de Pernambuco, seu inimigo político. Este pedaço de sua vida é revelado no filme. Dizem, aliás, que Delmiro Gouveia tinha queda por garotinhas; mandava inclusive raptar as que caiam no seu agrado.


Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) é assassinado diante de sua casa em 1917


Geraldo Sarno tomou conhecimento de Delmiro Gouveia em 1967, durante pesquisas aos seus documentários sobre o Nordeste. No roteiro o personagem ressurge devidamente contextualizado, talhado segundo o modus vivendi do coronelismo e das tradições que sustentam o poder na região. Porém, não deixa de ser, paradoxalmente, alguém que soube ou tentou superar as limitações temporais e de classe, assumindo posição de vanguarda. Assemelha-se ao empreendedor no melhor estilo burguês. No filme, é apresentado como pioneiro da fração nacionalista da burguesia nativa. Teria esboçado os fundamentos de uma economia brasileira independente e soberana em momento arriscado, quando o capitalismo dos centros avançados se internacionalizava em arrancada imperialista rumo aos países da periferia. Por ousar uma posição de independência e resistência a esse avanço, foi boicotado, perseguido e, provavelmente, assassinado. Sugere o filme que Delmiro Gouveia cometeu erro fatal, que lhe apressou a derrocada: não ligou seu destino individual aos da coletividade, o povo que empregava em seus empreendimentos. De uma ponta a outra vigorava o relacionamento inorgânico, fundado única e exclusivamente no imediatismo dos que precisavam trabalhar e do empresário necessitado de mão-de-obra. Uma interação voltada para relacionamentos mais avançados não se prenunciava. Porém, vai aí um reparo: as condições objetivas à realização de tal aliança não se apresentavam no Brasil, muito menos no oligárquico Nordeste. Portanto, desse ponto de vista, Delmiro não cometeu erros. Apesar das ideias avançadas ele não deixava de ser personagem de um mundo e tempo determinados, que separavam de maneira muito rígida os setores sociais. Uma sequência procura ilustrar bem o "erro" cometido: depois de libertado pelos homens do Coronel Luna, Delmiro marca presença em festa dos peões, comemorativa do feito. Ele, em vestes brancas de algodão e modos de europeu, circula entre jagunços rudes, trajados em couro bruto e escuro, empoeirados, quase todos descalços. O personagem desfila incólume, como se não notasse os homens em sua volta. Está simplesmente ali, sem comungar com eles. A celebração lembra uma confraternização que jamais se completa em interação.


O coronel Luna (Jofre Soares) pronto a retirar Delmiro Gouveia da prisão


A narrativa começa no alvorecer do século 20. Delmiro anuncia aos populares do Recife a inauguração do Derby, mercado modelo de sua iniciativa que comercializará gêneros de primeira necessidade a preços mais em conta. A concorrência, apoiada pelo Governador, contra-ataca: Durante os festejos pela chegada da nova centúria, o Derby é incendiado. Para piorar, é decretada a prisão de Delmiro. Obrigado a fugir, interna-se no sertão na companhia de Eulina, ainda menor de idade. Refugia-se em Alagoas, sob proteção dos coronéis Luna e Torres (Déda). Arruinado e acusado por sedução de menores, luta para refazer vida e fortuna. A tarefa não o assusta. Empreendedor, nunca lhe faltou iniciativa. Volta ao comércio de peles, atividade que cultivou na juventude. Experimenta o cruzamento dos gados zebu e holandês, introduzidos por ele na região, e é pioneiro na utilização da energia elétrica. Continua sofrendo perseguições políticas de todos os lados.


A expectativa pelo alvorecer do século XX: Anunciada (Isabel Ribeiro), Delmiro Gouveia (Rubens de Falco), Lionello Lona (Nildo Parente)

Alvorecer do século 20: Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) na inauguração do Derby

  
Em 1902, ainda em Alagoas, adquire a Fazenda da Pedra. Daí em diante não para de crescer. Alia-se em 1904 ao amigo Lionello Lona (Parente) na firma Lona e Cia., com filiais em várias cidades nordestinas. Exporta couro, caroço de mamona e algodão. Cria cavalos de raça e implementa melhorias em benfeitorias rurais. Em 1907 inicia a construção do açude de Pedra Velha, para explorar energia elétrica. Acompanhado de um grupo dos EUA, visita em 1909-1910 a Cachoeira de Paulo Afonso e planeja formar companhia de luz e força a partir do potencial das águas do Rio São Francisco. Pretende gerar energia para iluminar Recife. Em 1911 organiza a Companhia Agro-Fabril Mercantil, dedicada principalmente à produção de linhas de costura. Visita a Escócia, onde trava contato com parques industriais similares. Adquire equipamentos para a Fábrica de Linha da Pedra, inaugurada em 1914. Durante a grande seca de 1915, ampara retirantes, empregando-os em seus negócios. Constrói cinema e salão de danças na praça principal de Pedra.


Com o bloqueio comercial decorrente da Primeira Guerra Mundial — o conflito isola a América Latina da Europa —, Delmiro conquista o mercado brasileiro de linhas de costura e exporta aos países vizinhos. Terminada a beligerância, os ingleses investem na retomada do mercado. Empresários da Machine Cottons (Linhas Corrente) tentam adquirir a Fábrica da Pedra. Diante da recusa, partem para o dumping — redução drástica do preço do produto para retirar o concorrente do mercado. Mas o brasileiro resiste e permanece irredutível. Durante o imbróglio é assassinado. Em 1929 os ingleses adquirem a Fábrica de Linha da Pedra. Destroem as instalações e lançam as ruínas no São Francisco.


O roteiro, premiado no Festival de Brasília de 1978, demarca quatro pontos de observação para traçar o perfil do personagem. Assim, fornecem testemunhos: Eulina, o Coronel Luna, Lona e Zé do Pó (Dumont) — retirante empregado na fábrica que, de certo modo, complementa o depoimento que abre o filme, da parte de um sobrevivente do operariado arregimentado por Delmiro. Ele e Zé do Pó firmam o casamento entre o documento e a ficção, tão bem logrado por Sarno. Importante também é o fato de Coronel Delmiro Gouveia não fechar questão alguma em torno do personagem. Deixa pistas abertas, como se convidasse o espectador a envidar esforços no preenchimento das lacunas que separam a realidade do mito.


Coronel Luna (Jofre Soares), Tenente Isidoro (Álvaro Freire) e Delmiro Gouveia (Rubens de Falco)


Cabe registrar o trabalho de todo o elenco, com destaques evidentes para as interpretações de Rubens de Falco e do sempre comovente José Dumont. Digna de nota também á a fotografia solar de Lauro Escorel.


Entre as cenas e sequências merecedoras de destaque há a revolta de Eulina. Depois de sonhar com Paris, a moça é "exilada", por artes do amante, nos cafundós do sertão. Desesperada, irrompe no chiqueiro e compartilha com os porcos seus ricos vestidos e caros perfumes.


Delmiro Gouveia (Rubens de Falco) e Eulina (Sura Berdichevsky) em fuga


A trilha musical de Jaceguay Lins também foi premiada no Festival de Brasília de 1978. Coronel Delmiro Gouveia ainda recebeu o Grande Prêmio Coral no Festival de Havana, em 1979; nesse mesmo ano, o São Saruê da Federação de Cine Clubes do Estado do Rio de Janeiro e o Golfinho de Ouro do Governo do Estado do Rio de Janeiro. Foi apresentado no Festival de São Francisco, Califórnia, em 1978.





Argumento, roteiro e diálogos: Geraldo Sarno, Orlando Senna. Trilha musical: Jaceguay Lins. Direção de fotografia (Eastmancolor): Lauro Escorel Filho. Montagem: Amauri Alves. Direção de arte, cenografia e vestuário: Anísio Medeiros. Som: Walter Goulart. Diretor de produção: Marco Altberg. Produtor associado: Thomaz Farkas. Equipe de produção: Carlos Del Pino, Sérgio Santos, Eduardo Schnor, Regina Machado, Sinhosinho Jota. Continuidade: José Maria. Assistente de fotografia: José Tadeu. Operador de câmera e fotografia de cena: Pedro Farkas. Eletricista: Jadeyr Guimarães. Maquinista: Djalma, Arnol Conceição. Mixagem de som: Carlos de la Riva. Assistente de montagem: Idê Lacreta. Assistentes de cenografia: Gustavo Garnier Jr., Henrique Almeida. Guarda-roupa e maquiagem: Gigi. Costureira: Antônia Fonseca. Assistente de câmera: José Tadeu Ribeiro. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)



[1] Atualmente, o nome do lugar é Delmiro Gouveia.