domingo, 12 de outubro de 2014

O MODERNO CINEMA NARRATIVO NASCE NO BERÇO DO MAIS VIL E GROTESCO RACISMO — TERCEIRA E ÚLTIMA PARTE

"História escrita num relâmpago": assim Woodrow Wilson saudou O nascimento de uma nação. A plateia assombrada pelo arrojo da encenação reagiu favoravelmente. Parecia hipnotizada pelas imagens e independência narrativa que o cinema começava a ganhar. Passados tantos anos da estreia, a importância artístico-formal do filme está confirmada e registrada nos anais da história. De certa forma ainda é uma realização moderna, de grande apelo dramático, com passagens que continuam a emocionar. A guerra, com seus horrores e elevados custos humanos, foi soberbamente recriada por Griffith. Mas as reações contrárias logo se ouviram. Causou espécie, mesmo num país cindido racialmente, ver os negros como massa impulsionada por paixões irracionais, incapaz de organização e civilização, necessitada de controle imposto pela Ku-Klux-Klan. Griffith sentiu o golpe das acusações. Defendeu-se como pode. Alegou simpatia aos negros e se considerou vítima da intolerância. Apesar de tudo, a então declinante organização racista renasceu revigorada depois do retrato favorável recebido em O nascimento de uma nação. Esta última parte da apreciação trata do impacto do filme nos planos formais e ideológicos, bem como da defesa de Griffith às reações negativas geradas. Considera o cineasta e suas formulações como decorrências de um contexto histórico-social específico e, logicamente, das ideias geradas por uma percepção de homem e sociedade, em voga nesse cenário.






O nascimento de uma nação
The birth of a nation

Direção:
David Wark Griffith
Produção:
David Wark Griffith, Thomas F. Dixon
David Wark Griffith Corporation, Epoch Productions Corporation, Reliance-Majestic, Mutual Films Corporation
EUA — 1914
Elenco:
Lillian Gish, Henry B. Walthall, Mae Marsh, Ralph Lewis, George Siegmann, Josephine Crowell, Mirian Cooper, Donald Crisp, Wallace Reid, Elmer Clifton, Joseph Henabery, Spottiswoode Aitken, Robert Harron, Walter Long, J. A. Beringer, Jennie Lee, Maxfield Stanley, Mary Alden, Howard Gaye e os não creditados Eugene Pallete, Bessie Love, Raoul Walsh, Elmo Lincoln, Erich von Stroheim, Sean Aloysius "John Ford/Jack Ford" O’Feeney, Alberta Franklin, Alberta Lee, Allan Sears, Alma Rubens, Betty Marsh, Bob Burns, Charles Eagle Eye, Charles King, Charles Stevens, D. W. Griffith, Dark Cloud, David Butler, Donna Montran, Edmund Burns, Edward Burns, Fred Burns, Fred Hamer, George Walsh, Gibson Gowland, Harry Braham, Jules White, Lenore Cooper, Madame Sul-Te-Wan, Mary Wynn, Monte Blue, Olga Grey, Peggy Cartwright, Russell Hicks, Sam De Grasse, Tom Wilson, Vester Pegg, Violet Wilkey, Walter Huston, William De Vaull, William E. Cassidy, William Freeman. 



David Wark Griffith


David Wark Griffith morreu pobre e esquecido em 1948
Em 1945 esteve presente às filmagens de Duelo ao sol (Duel in the sun), de King Vidor, ocasião em que recebeu o apreço dos atores Walter Huston (à direita) e Lionel Barrymore (à esquerda)



Passaram-se muitos anos desde o lançamento de O nascimento de uma nação. Nesse meio tempo o cinema incorporou uma infinidade de técnicas e descobertas que, isoladamente consideradas, tornam pueril esse filme-marco. Mas tudo resulta de um processo que começa com a ousadia, intuição e consciência de Griffith. A isso, junta-se o assombro das plateias diante da poderosa encenação, abrilhantada pelos acordes de uma orquestra sinfônica na execução de trilha musical composta especialmente para a ocasião. Escritos de testemunhas oculares presentes ao lançamento de O nascimento de uma nação  gente como Woodrow Wilson, que definiu o filme como "História escrita num relâmpago"  existem aos montes e estão reproduzidos em livros, jornais e revistas. Apesar de interpretar equivocadamente a História, Griffith incorpora à narrativa toda a conjuntura americana anterior, durante e posterior à Guerra de Secessão: tramas políticas, os bastidores da Casa Branca, o trabalho e a diversão dos escravos, a vida nas mansões senhoriais, os campos de batalha, a ruína e recomposição de uma maneira de viver, o assassinato de Lincoln, o racismo. O público parecia não acreditar no que via. Nos instantes finais, diante da vibrante cavalgada da Ku-Klux-Klan rumo ao salvamento, substituía o entusiasmo pelo delírio: desmanchava-se em aplausos.


A narrativa estruturada e polarizada em vários núcleos de ação, a montagem ritmada, as cenas de batalha expondo a irracionalidade e inutilidade do conflito armado, os variados planos, os cortes, os flashbacks, o paralelismo, os travellings, as panorâmicas, a atuação livre e imaginativa da câmera, os prodígios da elipse, o salto de um centro de atenção a outro com retorno ao anterior, a direção audaciosa, a reconstituição do assassinato de Lincoln, o incêndio de Atlanta, os refugiados de guerra apinhando as estradas, os campos de batalha enfumaçados e cobertos de mortos, tudo justifica a inclusão de O nascimento de uma nação entre as obras mestras do cinema. Algumas invenções  como o escurecimento parcial do quadro para destacar personagens, ações e objetos, ou a divisão do mesmo em diferentes focos de ação , mostraram-se, ao contrário do esperado, pouco eficazes. Com o tempo foram eliminadas do arsenal de recursos cinematográficos. Não há nisso nenhum desmerecimento. Esses fracassos são normais na obra de qualquer criador que se arrisca sem medo na busca do novo.


Plano geral do campo de batalha


O mais importante é que O nascimento de uma nação resiste ao tempo. Ainda é um filme moderno; não se transformou em peça de museu — no sentido pejorativo do termo —, como costuma acontecer com muita invenção ousada. Muitas cenas, sequências e planos permanecem com a eficácia intacta. Algumas já foram citadas e comentadas. Mas há outras, como a tocante volta de Ben Cameron para casa depois da guerra. Continua emocionando e provocando arrepios. Primeiro o personagem é visto próximo da casa paterna. Reluta em entrar. Sente-se fracassado devido à derrota. Flora, a irmã dileta, aparece trajando o vestido surrado especialmente recomposto para a ocasião. Ben desmancha-se ao vê-la. Entreolham-se. Um procura no outro vestígios de um tempo que se perdeu. Ela, agora, é uma moça; ele, um homem amargurado. Conduzido por Flora, Ben chega à entrada principal da casa. A câmera faz a tomada em plano americano. Vê-se o braço da mãe enlaçando o filho ausente  o único que sobreviveu ao conflito , puxando-o para o interior do lar. A Senhora Cameron não precisava aparecer por inteiro. Sua presença estava subentendida. Poucas cenas, no cinema, conseguem expressar tamanho poder de sugestão.


Ben Cameron está em outra sequência de grande impacto. Na guerra, antes de ser gravemente ferido, o "jovem coronel" lidera desesperada carga contra a trincheira nortista comandada por Phil Stoneman. Atingido pelos tiros fraqueja e cai. Mas levanta-se trazendo junto a bandeira confederada. Ergue-a alto e avança resoluto para a posição inimiga. O mastro do estandarte, transformado em lança, estoca o canhão nortista. A cena é construída, sucessivamente, em plano geral, plano de conjunto e plano americano. Neste, Ben é captado de frente, o rosto em triunfo enfrentando a poderosa peça de artilharia. Sua expressão é um misto de dor e coragem, honra e dignidade. Não é preciso ir muito longe para saber o que Griffith pretendia com essa tomada. Nessa hora Ben Cameron é o próprio cineasta vingando-se simbolicamente da derrota sulista e revendo miticamente a figura paterna. Mas a cena contém outro significado: é como se o diretor estivesse se desforrando de todos aqueles que não acreditaram nas concepções que formulava para o cinema.


O clímax da investida de Ben Cameron (Henry B. Walthall) contra a barricada da União

  
São dolorosas as cenas da guerra. Griffith mostra o horror dos campos repletos de mortos. Sensibiliza o espectador fazendo-o sentir a privação nas trincheiras, o abandono dos soldados longe das famílias, o sacrifício inútil, a visão desesperada do amigo morto. Mais que nunca a sensibilidade do cineasta aflora nesses momentos, chocantes, é verdade, mas também líricos. O horror à guerra é constante em toda a obra do cineasta. Está presente em qualquer filme seu que faça menção às conflagrações armadas.


Muito bem orquestrado é o contexto que envolve o suicídio de Flora. Primeiro temos a imagem lúdica da natureza, bela, majestosa, inocente. Depois de longo período de clausura, no qual sentiu os nefastos efeitos da guerra, ela se extasia entre animais e flores. Mas esse cenário de poesia torna-se assustador com o surgimento de Gus. As árvores que compunham a beleza se transmudam em paredes de mortal labirinto que dificulta a fuga da moça. O penhasco banhado de sol, sobre o qual se poderia divisar toda a extensão do bosque, converte-se em ponto final de uma desesperada carreira que se prolonga no gesto de autoimolação. Entretanto, deve-se aí fazer um reparo. O controle de expressão dos atores é um dos trunfos que Griffith advogava para si. Porém, Mae Marsh mais que exagera. Agita os braços para todos os lados. O mesmo se nota quando Elsie é aprisionada por Silas Linch.


Elsie Stoneman (Lillian Gish) e Silas Linch (George Siegmann)


Bom também é o início da sequência que revela a sala do parlamento. Primeiro se vê o ambiente vazio, imediatamente repleto pelo ainda novo recurso da fusão. É o prólogo a um dos momentos mais constrangedores: os negros agindo simiescamente, desconhecendo qualquer noção de decoro.


A constrangedora e acintosamente racista sessão do parlamento, dominada por representantes negros


Se é paradigmático e exemplar do ponto de vista cinematográfico, O nascimento de uma nação é clamorosamente problemático no terreno racial. Também falha como interpretação histórica. Esta deficiência, apesar de escandalosa, é compreensível e até perdoável, ainda que retire do filme parte do seu vigor épico. Griffith não era historiador; muito menos possuía a racionalidade e o rigor de estudioso da matéria. Percebia a História não como um processo contraditório, decorrente de embates entre concepções inconciliáveis de administração da existência. Via-a pelo prisma da tragédia, controlada por imponderável fatalidade. Ou, no entendimento de John Howard Lawson, "Como um processo cego e inevitável", "Como uma narrativa em torno de seres humanos que lutam e sofrem"[1].


A História, para o cineasta, resulta de um desarranjo na ordem natural das coisas, que envolve num turbilhão incontrolável todos os que dela participam. Desse modo, o conflito Norte-Sul que desemboca na guerra civil não deriva de visões inconciliáveis de desenvolvimento nacional. Griffith idealiza a vida estadunidense anterior à secessão. Aos seus olhos a cisão encerra "um período de virtude pioneira" e o começo de "uma nova era de descontentamento e exploração intensificada"[2]. Essa ingenuidade o impede também de compreender e nuançar a questão do negro — com quem mais de uma vez afirmou simpatizar —, enfocada na base do maniqueísmo mais estereotipado. Via a escravidão como parte da ordem natural, cristalizada no "Velho Sul". Assim, o desejo de liberdade e afirmação do escravo resulta pura e simplesmente da ação demagógica de brancos equivocados. Os negros livres não passam de massa impulsionada por paixões irracionais, incapazes de organização e civilização; portanto, deveriam ser controlados pelos antigos senhores. No filme, essa é missão da Ku-Klux-Klan.


O suicídio de Flora (Mae Marsh)


Griffith ficou chocado com as reações negativas e furiosas que o filme provocou, exatamente por causa da questão racial. Se há que repudiar com toda veemência a cegueira do cineasta em seu esforço de heroicizar a Ku-Klux-Klan, deve-se, entretanto, tentar melhor compreensão do seu racismo. O preconceito que manifesta não resulta de sentimento gratuito e irracional. Por mais difícil que seja  e hoje é muito mais fácil fazer isso , deve-se analisar desapaixonadamente O nascimento de uma nação e o próprio cineasta, tentando compreendê-los, criador e criatura, dentro de um contexto determinado. Assim surgem as perguntas: o que pensava Griffith? Qual era seu horizonte intelectual? O cineasta repercutia as ideias de sua época, não apenas as localizadamente sulistas. Não pairava sobre seu tempo; não era um ignorante qualquer, como se pode concluir da observação de sua biografia. Lia muito; estava familiarizado com diversos autores. Estes, por sua vez, referendaram muitas balelas e falácias geradas no bojo do "cientificismo europeu": formulações de raça, homem e sociedade elaboradas na segunda metade do século XIX, que tentavam compreensão científica da diversidade racial fundada nos conceitos de evolução, desigualdade e inferioridade.


Hoje as formulações do "cientificismo" são risíveis. A moderna ciência social, principalmente a antropologia cultural, enterrou-as. Mesmo assim, resistem ecos dessa falsa ciência e de quem insista em lhes dar ouvidos. No começo do século XX tais concepções ainda estavam frescas e vigorosas. Eram aceitas sem maiores problemas, contaminando toda uma maneira de pensar. Tinham ares de ciência, logo, de verdade. O "cientificismo" fez cama no Ocidente. Logicamente não deixou os Estados Unidos de fora, ainda mais o conflagrado Sul no qual Griffith se formou. Gerou ideias que pregavam abertamente a inferioridade do negro, tido como naturalmente incapaz de desenvolvimento autônomo. Se deixado à inteira liberdade cometeria uma série de desatinos. Por isso, deveria ser rigorosamente controlado. Quanto à miscigenação, o "cientificismo" via-a com horror, afinal tinha as raças como desiguais; da mesma forma deveriam ser seus os seus frutos. Acreditava-se no atavismo, que faria o mulato herdar as piores qualidades genéticas e sociais dos coligados para gerá-lo. Isso explica as manhas de Lydia e a comportamento traiçoeiro de Silas Linch. A esse último ponto há que juntar o pavor básico do puritano, o medo de conspurcar um ideal de pureza original firmado com Deus, que exige, em contrapartida, o afastamento e banimento do gentio.


A manhosa mulata Lydia (Mary Alden)

Silas Linch (George Siegmann), à esquerda, Elsie Stoneman (Lillian Gish) e Ben Cameron (Henry B. Walthall)


Mas e se Griffith fosse mesmo um empedernido e gratuito racista, como diagnosticaram as mais violentas críticas da época? Sem dúvida, mereceria a execração, mas também elogios pelo sincero destemor com que tratou o tema, sem nenhuma dissimulação. Nos Estados Unidos a incorporação do negro foi sempre a questão nacional mais relevante. Mas também era tabu. Poucos se atreviam a destacá-la. Griffith teve a coragem de fazer isso. Foi praticamente o primeiro, pelo menos no cinema, a discutir a identidade étnica do país. Formalmente realizou um filme vigoroso, do qual muito se falou, mas ilustrado por ideias grotescas.


O nascimento de uma nação foi classificado como "humilhação deliberada de 10 milhões de americanos (negros)"[3]. Provocou incontáveis tumultos onde quer que fosse exibido. "As emoções que despertou"  conta Arthur Knight[4]  começavam no interior das salas de exibição, "transbordavam pelas calçadas" e ganhavam as ruas, gerando lutas e conflitos que decretaram o fim do cinema da idade da inocência. John Howard Lawson cita o exemplo de Boston, onde "uma multidão manifestou-se durante 24 horas diante dos cinemas"[5], gerando mortes. Chicago e Nova York também presenciaram violentos conflitos. Ligas dos direitos civis, controladas por negros  como a Associação Para o Progresso das Pessoas de Cor[6]  ou a estes identificadas, levantaram em uníssono vozes contra o filme, pedindo sua proibição. Contaram com a solidariedade de jornais de circulação nacional como The Nation e The New Stateman. O movimento atingiu proporções assustadoras. As exibições foram proibidas no sulista Ohio e em outros estados.


Depois da assinatura do Tratado de Versalhes, O nascimento de uma nação tentou sorte na Europa. Encontrou o mesmo sentimento de repulsa. Na Rússia nunca foi exibido, tanto na czarista como na soviética. França e Inglaterra, potências coloniais, também o recusaram. O motivo: o importante papel que as tropas africanas desempenharam nos exércitos desses países durante a Primeira Guerra Mundial. A liberação em território francês só ocorre em 1922, mesmo assim, com vários cortes.


Griffth não conseguia entender as causas da movimentação contra o filme. Mas apesar de assustado não se aquietou. Defendeu-se como pôde, invocando a consciência liberal americana e levando a discussão para o campo da liberdade de expressão. Alegou, corajosamente, ser o tradutor fiel de uma realidade histórica; reiterou a simpatia que sempre devotou aos negros. Redigiu e fez publicar nos jornais e revistas um manifesto irado: The rise and fall of free speech in America[7], no qual exigia para o cinema "os mesmos direitos do livro e da imprensa"[8], advertindo que as restrições exigidas para o filme eram apenas parte de um esforço inicial para impor a censura a todas as formas de expressão[9]. Parte desse libelo é lido na abertura de O nascimento de uma nação: "Não temos medo da censura, pois não tivemos a intenção de ofender de forma imprópria e com obscenidades a ninguém. Mas exigimos o direito e a liberdade de mostrar o lado negro do erro. Assim como mostrar o reluzente lado da virtude. A mesma liberdade que é concedida para escrever. É essa arte que nos faz escolher a Bíblia e Shakespeare".


Elsie Stoneman (Lillian Gish) é ameaçada por Lydia (Mary Alden)


Segundo Paulo Emílio Sales Gomes, Griffith se considerou vítima de intolerância, o que é patente em muitos outros manifestos que escreveu. Intolerância é palavra chave, recorrente, em tudo o que redige: "A intolerância é o caminho da censura; a intolerância martirizou Joana D'Arc; a intolerância esmagou a primeira máquina impressora; a intolerância inventou as feiticeiras de Salem"[10]. Por fim, acentua Gomes: "Ao mesmo tempo, porém, no íntimo ele começava a achar-se também culpado"[11] Seu filme seguinte ostenta exatamente o título de Intolerância (Intolerance, 1916). É uma resposta aos ataques que recebeu e também uma confissão de culpa. Griffith ficou tão confuso a ponto de não mais saber se "está polemizando com adversários ou desculpando-se"[12].


Após salvar a honra das mulheres brancas, a Ku-Klux-Klan entra vitoriosa em Piedmont


De certa forma, em muitos filmes posteriores, Griffith procura um acerto de contas com a repercussão negativa de O nascimento de uma nação. Se o tema de Intolerância passava ao largo da questão racial, procurava evidenciar a consciência liberal e progressista do cineasta. Entretanto, em Corações do mundo (Hearts of the world, 1918), libelo antibelicista, uma das cenas principais apelava para a fraternidade entre os diferentes, mostrando um soldado branco abraçado a um negro.


São duas as consequências concretas de O nascimento de uma nação. A primeira é mais que clara: é o filme que reinventou o cinema e disso ninguém duvida. A segunda é deplorável: provocou o ressurgimento revigorado da criminosa Ku-Klux-Klan. A organização estava em baixa quando os debates apaixonados em torno do filme provocaram seu renascimento com cerca de 4 milhões de membros. Novamente, cruzes em chamas e linchamentos tingiam o caminho por onde passavam os fanáticos celerados da limpeza racial. Griffith não poderia ter ignorado essa história nem a quantidade de vítimas inocentes do mais puro e ignóbil terror, pondera Marcel Martin[13].


O odioso efeito colateral de O nascimento de uma nação: o ressurgimento revigorado da então combalida  Ku-Klux-Klan - a organização renasceu com 4 milhões de membros
  

Em todo caso, polêmicas à parte, O nascimento de uma nação acentua de vez algumas das melhores qualidades de Griffith, vistas esparsamente em todos os seus filmes: a preocupação com o destino daqueles que lhe são culturalmente próximos. Vemos o artista denunciar a estupidez da guerra, manifestar solidariedade com os pobres, explorados e vítimas de torpezas. Numa época em que ninguém ousava pensar num cinema a serviço da revolução, foi o conservador Griffith, sulista tantas vezes chamado de reacionário, quem expôs pela primeira vez nas telas as duras condições de vida daqueles que se matam no trabalho — ou que são levados a perdê-lo — apenas para garantir o ócio de uma minoria privilegiada. Essa generosidade, apesar de ingênua, serve para destacar ainda mais a rudeza do tratamento dispensado aos negros em O nascimento de uma nação. Desumaniza-os por completo, implacavelmente. Não são historicizados. Não se fazem dignos de aceitação, muito menos de compreensão. Estão largados aos impulsos irracionais e descontrolados da natureza. Devem ser contidos por força de barreiras protetoras. Nem a mensagem de tolerância e incorporação do cristianismo se abre para eles.






Direção de fotografia (preto-e-branco): G. W. "Billy" Bitzer. Roteiro: David Wark Griffith, Frank E. Woods, Thomas Dixon, com base nas novelas de Thomas Dixon Jr., The Clansman: An historical romance of the Ku Klux Klan, The leopard's spots, e nas Notas autobiográficas de Jacob Wark Griffith. Produção executiva: Harry E. Aitken. Montagem: David Wark Griffith, Joseph Henabery, James Smith, Rose Smith, Raoul Walsh. Assistentes de direção (não creditados): Erich von Stroheim, Woody S. Van Dyke, Jack Conway, Raoul Walsh, George Siegman, Monte Blue, Christy Cabanne, Elmer Clifton, Donald Crisp, Allan Dwan, Howard Gaye, Fred Hamer, Robert Harron, Joseph Henabery, Thomas E. O'Brien, Herbert Sutch, Baron von Winther, Henry B. Walthall, Tom Wilson. Compositores do acompanhamento musical à época do lançamento: Joseph Carl Breil, David Wark Griffith. Supervisão da restauração: Paul Killiam, curador do espólio de David Wark Griffith. Organização da trilha musical e arranjos pela Killiam Shows: Fraser MacDonald. Figurinos (não creditados): Robert Goldstein, Clare West. Contrarregra (não creditado): Ralph M. DeLacy. Carpintaria (não creditada): Shorty English. Assistência de carpintaria (não creditada): Jim Newman. Pintura (não creditada): Cash Shockey, Edificações (não creditadas): Joseph Stringer. Assistência de contrarregra (não creditada): Hal Sullivan. Planejamento do set (não creditado): Frank Wortman. Supervisão de efeitos especiais (não creditada): Walter Hoffman. Efeitos especiais (não creditados): 'Fireworks' Wilson. Dublês (não creditados): Monte Blue, Charles Eagle Eye, Leo Nomis. Operador de câmera (não creditado): Karl Brown. Assistente de câmera (não creditado): Frank B. Good. Confecção de figurinos (não creditados): Robert Goldstein. Restauração dos negativos pela Killiam Shows: Karl Malkames. Arranjos musicais do relançamento em 1921 em New York (não creditado): William Axt. Músico (não creditados): Harry Berken (trumpete). Direção musical (não creditada): Carli Elinor. Adaptação musical à versão de som sincronizado em 1930 (não creditado): Louis F. Gottschalk. Arranjo musical da reapresentação de 1921 em New York (não creditado): Herman Hand, Erno Rapee. Compositor da abertura na premiere em Los Angeles (não creditado): Joseph Nurnberger. Apresentação: David Wark Griffith. Segurança (não creditado): Jim Kidd. Técnico de laboratório (não creditado): Abe Scholtz. Companhia de confecção de figurinos: Goldstein and Company. Guarda-roupa: Western Costume Company. Tempo de exibição: 190 minutos na velocidade original de 16 fotogramas por segundo; 170 minutos na versão analisada; há versões com 160 e 154 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1985)



[1] LAWSON, John Howard. O processo de criação no cinema. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. p. 45.
[2] Ibidem. p. 46.
[3] Ibidem. p. 49.
[4] KNIGHT, Arthur. Uma história panorâmica do cinema:  a mais viva das arte. Rio de Janeiro: Lidador, 1970. p. 26.
[5] LAWSON, John Howard. Op. cit. p. 46.
[6] Esta instituição, ao longo de anos, orquestrou um boicote organizado ao filme.
[7] "A ascensão e queda da liberdade de palavra nos Estados Unidos".
[8] GOMES, Paulo Emílio Sales. Crítica de cinema no Suplemento Literário. Rio de Janeiro: Paz e Terra, v. 1, 1982. p. 368.
[9] Cf. SKLAR, Robert. História social do cinema americano.  São Paulo: Cultrix, 1978. p. 78.
[10] GOMES, Paulo Emílio Sales. Op. cit. p. 369.
[11] Ibidem.
[12] Ibidem.
[13] MARTIN, Marcel. De quoi broyer du noir. Cinéma 71. Paris, n. 154, mar./1971. p. 139-140.