domingo, 18 de janeiro de 2015

O MAL ESTAR DA CIVILIZAÇÃO BURGUESA NO ESCATOLÓGICO MANIFESTO DE MARCO FERRERI

Por onde passou, A comilança (La grande bouffe/La grande abbuffata, 1973) não deixou pedra sobre pedra. O filme-manifesto de Marco Ferreri iniciou carreira "rasgando" o Festival de Cannes de 1973: de um lado, aplausos; de outro, execrações. E assim seguiu enquanto cumpriu carreira. No Brasil, sofreu seis anos de interdição. Foi liberado em 1980 — ocasião em que o assisti —, no mesmo caudal que trouxe a público outras realizações radicais e transgressoras que escandalizaram os anos 70, todas proibidas pela nossa censura. Mantida a sua especificidade, a cáustica comédia de Marco Ferreri poderia fazer dobradinha perfeita com Saló ou os 120 dias de Sodoma (Salò o le 120 giornate di Sodoma, 1975), de Pier Paolo Pasolini. Mas, aqui, este somente receberia salvo conduto em 1989. Polemista e provocador, Ferreri encena uma jornada sem retorno de seus desencantados e decadentes personagens por caminhos pavimentados de niilismo e muita escatologia fétida. Definitivamente, não é filme para certinhos e moralistas. Mas é um prazeroso, divertido e, ao mesmo tempo, sério desafio para espectadores abertos a qualquer tipo de profanação. Se pudessem tomar assento entre eles, Karl Marx e Sigmund Freud certamente sorririam satisfeitos, de orelha e orelha, com esta alegórica revolução estomacal que reencena, em tempos de afluência e consumismo burguês, a decadência e queda do Império Romano numa mansão parisiense.  É um filme profético. Só ganhou mais atualidade com a passagem do tempo. O texto a seguir foi escrito há 35 anos.






A comilança
La grande bouffe/La grande abbuffata

Direção:
Marco Ferreri
Produção:
Vincent Malle
Mara Films, Les Films 66 (Paris), Capitolina Produzzioni Cinematografiche (Roma)
Itália, França — 1973
Elenco:
Ugo Tognazzi, Philippe Noiret, Michel Piccoli, Marcello Mastroianni, Andréa Ferréol, Henri Piccoli, Maurice Dorléac, Simon Tchao, Louis Navarre, Bernard Ménez, Cordelia Piccoli, Jérôme Richard, Patricia Milochevitch, James Campbell, Eva Simonnet, Solange Blondeau, Florence Giorgetti, Michèle Alexandre, Monique Chaumette, Maurice Teynac, Gérard Boucaron, Anette Carducci, Margaret Honeywell, Giuseppe Maffioli e a não creditada Rita Scherrer.



Polemista, provocador, transgressor: o diretor Marco Ferreri


Os personagens principais são identificados pelos prenomes dos atores que os interpretam: Marcello (Mastroianni), Michel (Piccoli), Philippe (Noiret), Ugo (Tognazzi) e Andréa (Ferréol). O quinteto marca encontro com a morte em celebração do vazio existencial nesta polêmica e provocadora realização de Marco Ferreri. A comilança cindiu o Festival de Cannes de 1973. Uma ala o aplaudiu enquanto outra o execrou. Não foi diferente nos demais círculos. Compõe com O último tango em Paris (Le dernier tango à Paris, 1972), de Bernardo Bertolucci; O império dos sentidos (Ai no corrida, 1976), de Nagisa Oshima; e a "trilogia da vida" de Pier Paolo Pasolini  Decameron (Il Decamerone, 1972), Os contos de Canterbury (I racconti di Canterbury, 1973), As flores das 1001 noites (Il fiore delle mille e una notte, 1974)  um conjunto ímpar de realizações que escandalizou os anos 70. São obras transgressoras e radicais. Quanto a isto, A comilança endereça visão nada complacente aos rumos da vida numa civilização que se locupleta nas armadilhas da aquisição, do consumismo e descarte desenfreados, cada vez mais contínuos e acelerados, de bens materiais. Os títulos referidos avançam do niilismo (os trabalhos de Bertolucci, Ferreri e Oshima) ao bom humor irreverente (a trinca de Pasolini). Nenhum estreou de imediato no Brasil. Proibidos pela censura do regime militar, tiveram que aguardar a luz verde da abertura política do começo dos 80. La grande bouffe permaneceu seis anos interditado entre nós.


Andréa (Andréa Ferréol) e Michel (Michel Piccoli)

Andréa (Andréa Ferréol)

No sentido mais lato A comilança segue as pegadas do iconoclasta jovem Luís Buñuel, declaradamente um dos cineastas preferidos de Marco Ferreri. Este, como o mestre espanhol, tem a burguesia na alça de mira. Desfere crítica ácida, desencantada e despudorada à classe síntese da civilização moderna. Aliás, o filme é mais que um simples libelo antiburguês. A direção evita se perder no universo das aparências. Persegue o mal estar dos valores estabelecidos e a falta de sentido decorrente de uma determinada condição de vida.



Andréa (Andréa Ferréol) e Philippe (Philippe Noiret)


A concepção fílmica de A comilança não apresenta ousadias formais. A narrativa simples vai direto ao xis da questão. Não se perde no atoleiro das meias medidas. Marcelo, comandante de avião; Ugo, restauranteur; Michel, produtor musical; e, Philippe, juiz de direito, são amigos bem situados econômica e socialmente. Num fim de semana resolvem abdicar de seus afazeres e se reúnem na mansão desabitada da família de Philippe, arredores de Paris. Aí — como se fossem membros enfastiados da aristocracia dos tempos da decadência do Império Romano —, entregam-se ao que bem sabem fazer: o orgiástico exercício da gula; uma comilança sem limites que oculta um pacto de suicídio — palavra em nenhum momento pronunciada. Pratos finíssimos, preparados pela renomada Casa Fouchon, de Paris, são degustados sem deixar sobras. O ato de comer é transformado em ritual de emoção exclusiva, interrompido apenas para dar lugar a outra degustação, a da sexualidade, para a qual se servem três prostitutas e uma professora primária, Andréa — das mulheres, a única que permanece na mansão até o fim. Cabe a ela papel paradoxal: é um anjo, ao mesmo tempo da guarda e exterminador. Estimula a orgia e presencia as sucessivas mortes de cada membro dos afluentes comensais.


Marcello (Marcello Mastroianni) e uma das "bacantes"


Michel (Michel Piccoli) e uma acompanhante

 Philippe (Philippe Noiret), Michel (Michel Piccoli) e Ugo (Ugo Tognazzi)

O que pretende Ferreri com esse argumento provocador? A radicalização do ato de comer é limitada apenas à ingestão (consumo) desenfreada, irracional, de requintados pratos (bens). O sexo praticado nos entremeios das degustações jamais chega aos estertores do prazer liberador. É da pulsão de morte que trata o filme, tanto existencial quanto física. Marcello, Ugo, Philippe e Michel são espectros de homens reduzidos aos aspectos sensoriais ou primários, os mais básicas da existência. Vivem num universo mecanizado, desumanizado, sem sentido, desesperançado, angustiado, marcado por fastio, tédio, niilismo, alienação e ausência de racionalidade. O espectador se posta diante de um cansaço de civilização conjuntamente experimentado. Presencia e sente uma situação de pânico existencial para a qual estão suspensos quaisquer mecanismos de controle. Liberdade — para o grupo — significa comer/consumir e defecar/descartar até o derradeiro e fatal fim. O desaguadouro de todo esse desatino, o vaso sanitário/planeta, não possui calado suficiente para suportar toda a produção que lhe é atirada sem a menor parcimônia. Numa sequência cômica explode, transformando tudo em fétido atoleiro. Nesse momento, A comilança atinge o máximo de sua escatologia desesperançada. A seguir vem a morte — o simbólico fim da burguesia (e da civilização ocidental), predestinada a se afogar no próprio lixo que produziu, aqui traduzido por um mar misturado de fezes, suco gástrico e urina.



Andréa (Andréa Ferréol), Michel (Michel Piccoli), Philippe (Philippe Noiret) e  Ugo (Ugo Tognazzi)

Philippe (Philippe Noiret),  Ugo (Ugo Tognazzi) e Andréa (Andréa Ferréol)


A comilança é uma epopeia desencantada. Começa na mesa, frustra-se na cama e termina inevitavelmente no vaso sanitário, escoadouro alegórico do consumismo, do desperdício e do irracionalismo. Ferreri construiu um ótimo, corrosivo e inteligente filme, mesmo que se perca, às vezes, no marasmo e na repetição. Mas qualquer senão é anulado pelo elenco afinado e entrosado. Nele se destaca Andréa Ferréol, gordinha maravilhosa e desinibida, que não teve medo de expor, com sua nudez, um tipo pouco apregoado de sensualidade.






Direção de fotografia (Eastmancolor, Panavision): Mario Vulpiani. Roteiro e adaptação: Marco Ferreri, Rafael Azcona. Montagem: Claudine Merlin, Gina Pignier. Preparação de alimentos: Fauchon. Consultoria gastronômica: Giuseppe Maffioli, assistido por Jacques Quelennec. Diálogos: Francis Blanche. Administração da produção: La Société du Film. Música: Philippe Sarde. Músico: Michel Piccoli (piano). Direção musical: Alain Coiffier, Hubert Rostaing. Engenharia musical: William Flageollet (não creditado). Delegado de produção: Jean-Pierre Rassam. Assistentes de direção: Enrique Bergier, Jacqueline Perrier, Rémy Duchemin, François Lavigne. Operador de câmera: Pascuale Rachini. Gerente de produção: Alain Coiffier.Gerente de unidade de produção: Ilya Claisse. Decoração e desenho de produção: Michel de Broin. Direção de arte: Claude Suné. Figurinos: Gitt Magrini. Engenheiro de som: Jean-Pierre Ruh. Assistentes de câmera: Yves Pouffary, Jacques Dorot. Fotografia de cena: Bernard Prim. Assistente de decoração: Maurice Sergent. Continuidade: Claude Sune. Maquiagem: Jacky Nouban, Alfonso Gola. Guarda-roupa: Geneviève Tonnelier, Muriel Ghene. Contrarregra: Michel Sune, Roger Jumeau. Chefe eletricista: Jean-Louis Dastugue. Chefe maquinista: Ferdinand Rocquet. Efeitos especiais: Paul Trielli. Administração do estúdio: Ilya Claisse. Administração adjunta: Volker Lemke, Henri Laurent, Claude Parnet. Administração: Colette Suder. Secretária de produção: Annie Cabat. Assistente de som: Michel Laurent, Jean Fontaine. Assistentes de montagem: Monique Prim, Laurence Lemaire. Material de cozinha: Becuwe Thomselle. Tempo de exibição: 125 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1980)

2 comentários:

  1. Nossa! Fiquei chocada...deve ser maravilhoso!
    Um abraço, Eugenio. Bjs.

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    1. É uma daquelas películas que podem ser consideradas como necessárias no registro social e histórico de um determinado tempo, Sandra. Nestes aspectos, é, como foi frisado mais ao alto, uma película-manifesto. Ainda é fundamental.

      Abraços e beijos.

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