domingo, 21 de agosto de 2016

"A VIDA DURA SÓ UM DIA: UM PORRE, UM GESTO, UM GEMIDO, ... UM DELÍRIO"

Os emancipados de fórmulas sabem que não existe uma maneira dita correta de se fazer cinema — na maioria das vezes prisioneira de referenciais hollywoodianos (no campo das artes tudo está certo ou, da mesma forma, errado, no final das contas). A esses, A Lira do Delírio (1978), de Walter Lima Jr., é um filmaço. Concebido à revelia das ortodoxias tão agradáveis aos prisioneiros de convicções, é exercício autoral em grande estilo: inventivo, livre, leve e solto. Contém a melhor interpretação de Anecy Rocha, tragicamente falecida na flor da idade e, por isso, impedida de vê-lo concluído. Passou por várias metamorfoses, desde a concepção na forma de um drama alinhavado por um bloco de carnaval a respeito da frustrada paixão do compositor Assis Valente por Carmen Miranda. Depois houve a tentativa de se fazer um misto de musical com história de amor, pontuado de reminiscências afloradas durante a evolução de um agrupamento momesco. Porém a brutal realidade truncou a proposta, até se apresentar como possibilidade a uma história que combina a catarse permitida pelo império de Momo com a sordidez da mais cruel crônica policial. Em A Lira do Delírio a sofrida Ness Elliot (Anecy Rocha) cumpre, metaforicamente, a sina do folião em busca de libertação do sufoco: vive, morre e renasce no carnaval, momento tão bem sintetizado em inspirada fala-síntese de Pereio (Paulo César Pereio) enquanto um iluminado Walter Lima Jr. casa as limitações dos Irmãos Lumière com a expansão de fronteiras de Georges Méliès. A apreciação a seguir é de 1979.






A Lira do Delírio

Direção:
Walter Lima Jr.
Produção:
Walter Lima Jr.
Embrafilme, Walter Lima Jr. Produções Cinematográficas Ltda., R. F. Farias Produções Cinematográficas
Brasil — 1978
Elenco:
Anecy Rocha, Paulo César Pereio, Cláudio Marzo, Tonico Pereira, Antônio Pedro, Othoniel Sena, Pedro Bira, Rosita Thomaz Lopes, Jamelão, João Loredo, Lene Nunes, Jorge Rocha de Lima (Guri-Guri), Alvaro Freire, Isabella Campos, Olinda Ribeiro, Jorge Mourão, Marilza Ribeiro, Flávia Ribeiro.



O diretor Walter Lima Jr.


É o quarto longa de Walter Lima Jr. e a última atuação de sua companheira, Anecy Rocha (1942-1977). Ela, desgraçadamente, não pode vê-lo concluído. Morreu de forma tão estúpida quanto inexplicável ao despencar no poço do elevador do prédio no qual morava. A atriz, irmã de Glauber, tem em A Lira do Delírio o melhor momento de uma carreira meteórica. A realização combina o lado mais onírico da vida à bruta realidade na abordagem da solidão e fragilidade dos relacionamentos. Mostra — à semelhança de Riobaldo Tatarana, personagem de Guimarães Rosa em Grande sertão: veredas — que viver é uma aventura muito perigosa.




Acima, ao centro e abaixo: Anecy Rocha, exuberante e plena de vitalidade no papel de Ness Elliot


A Lira do Delírio passou por várias etapas até adquirir o formato definitivo. Num primeiro momento, Walter Lima Jr. planejou realizar Salve o prazer, ensaio sobre a paixão mal resolvida de Assis Valente por Carmem Miranda. O compositor seria interpretado por Caetano Veloso e o filme teria por eixo condutor a evolução de um bloco de carnaval. O projeto terminou abortado, mas não a ideia de enfocar cinematograficamente um grêmio momesco. Em 1973, Walter Lima Jr. resolveu filmar o carnaval do Quarto Centenário de sua natal cidade de Niterói/RJ, acompanhado do diretor de fotografia Dib Lufti e dos principais nomes do elenco. Nas tomadas, os atores improvisam junto aos integrantes do bloco A Lira do Delírio. Nesse segundo momento, havia a pretensão de encenar um misto de musical e história de amor com base nas reminiscências cruzadas dos personagens, cada qual apresentado, definido e conduzido por uma canção. Os quatro dias de filmagens resultaram num material com seis horas de duração, tempo mais que suficiente para compor o eixo do projeto.


Porém, a violência do carnaval niteroiense naquele ano marcou fortemente as imagens. A barra pesada do cotidiano atingiu em cheio a avenida improvisada em set. Os atores passaram por situações de risco em meio ao bloco, posto que foram ameaçados fisicamente por foliões com nervos à flor da pele. A partir dessa situação, Lima Jr. decidiu que tal pano de fundo poderia servir de suporte a qualquer outro assunto, mas não a um musical segundo as pretensões iniciais. Resultado: durante aproximados três anos as imagens foram arquivadas à espera de melhor destinação. Enquanto isso, o diretor conseguiu emprego na TV Globo, para realizar programas especiais nas áreas do telejornalismo e da dramaturgia.


A atriz Lene Nunes

Isabella Campos, à direita, em participação especial, Anecy Rocha como Ness Elliot 


Por fim, a própria violência — não apenas a do carnaval de Niterói, mas, em geral, forjada no cotidiano dos grandes centros urbanos — deu o tom à história que seria contada. As imagens de 1973 funcionariam como um documento ou um flagrante da vida real. Em decorrência do que foi captado, resultaria uma ficção plenamente colada à realidade, um drama de conotações policiais com vistas a gerar uma leitura ilustrativa da situação presente. O que se veria então seria o real servindo de anteparo a uma história inventada, ou, conforme o diretor, A Lira do Delírio derivaria do encontro de duas concepções originadas no próprio nascimento do cinema: a dos irmãos August e Louis Lumière — que captava a realidade em estado bruto —, e a de Georges Méliès — que transformou o novo meio de expressão em exercício de ludismo.


Cláudio Marzo como Cláudio e Anecy Rocha no papel de Ness Elliot

  
Assim, aos instantâneos que "Lima Jr.―Lumière" obteve em Niterói, o "Lima Jr.‑Méliès" mesclou as aventuras e desventuras de Ness Elliot (Rocha), garota de programa e dançarina dos cabarés da Lapa. A trama envolve rapto, assassinatos, tráfico de drogas, amor, dinheiro, sexo, dominação, ternura e desespero. Os personagens perambulam por vielas sórdidas e escuras nas quais se distribuem casas noturnas de má extração. Vivem a vida no fio da navalha, sempre em situações-limite, misturados à fauna constituída por prostitutas, bêbados, travestis, homossexuais e assassinos. Outras opções não lhes são dadas. No entanto, toda essa gente anônima e largada possui algo em comum: integra o bloco carnavalesco A Lira do Delírio, espécie de central a serviço da catarse do desespero, das mágoas e frustrações acumuladas, lugar onde ninguém é de ninguém. A estrutura do drama é cíclica: começa e termina no carnaval.


Ness Elliot é cobiçada por todos os homens, na avenida e no cabaré. Porém, tenta preservar a liberdade que imagina ter, sem se relacionar permanentemente com quem quer que seja. Essa condição, aceita com certa naturalidade pelos demais durante o período de exceção do império momesco, não é vista com bons olhos no cotidiano ordinário, principalmente pelo burguês machão, possessivo e despótico Cláudio (Cláudio Marzo). Corroído pelo ciúme, pretende ter exclusividade sobre a garota. Para isso, força a barra. Primeiro, tenta comprometê-la com o tráfico de drogas. Depois, resolve atingi-la no ponto mais frágil: contrata o marginal Pereira (Tonico Pereira) para lhe raptar o filho, o bebê Guri-Guri (Jorge Rocha de Lima). Desesperada, Ness Elliot pede socorro ao amigo Pereio (Paulo César Pereio), misto de repórter policial e boêmio, conhecedor do submundo como poucos e narrador do filme — como se fosse um alter ego de Lima Jr. Ao investigar o assassinato do homossexual Toni (Othoniel Serra), encontra pistas do paradeiro da criança: está nas mãos de um receptador identificado apenas como médico (Antônio Pedro), que planeja vendê-lo a um casal estrangeiro.


Para encontrar o filho, Ness Elliot (Anecy Rocha) pede ajuda ao repórter Pereio (Paulo César Pereio)


Realizado com câmera quase sempre na mão, A Lira do Delírio se vale do som direto e da filmagem em 16 mm, ao menos para as cenas do carnaval de Niterói. À exceção de Anecy Rocha, todos os demais personagens guardam a real identidade dos atores que os interpretam: Cláudio Marzo é Cláudio, Paulo César Pereio é Pereio e assim por diante. Guri-Guri, o bebê de Ness Elliot, é o apelido carinhoso de Jorge Rocha de Lima ou Jorginho, filho de Anecy com o diretor. Este tomou a decisão de chamar os personagens principais pelos nomes dos atores que os representam em reconhecimento ao trabalho que desenvolveram e aos riscos que correram nas etapas iniciais do projeto. Como não houve um roteiro detalhado durante as filmagens, muito de A Lira do Delírio resulta de improvisação dos intérpretes, inclusive detalhes cenográficos, caracterização, diálogos etc. O setor dramático foi desenvolvido à base de módulos ou curtos takes com fragmentos da ação. Lima Jr. pôde trabalhá-los à vontade. Teria opções para ordenar essas tomadas de várias maneiras, tanto que teve à disposição cinco versões diferentes para a história. Exemplo mais livre, sensorial e experimental de cinema que esse muito dificilmente aparecerá. Paulo Moura organizou riquíssima e inspirada trilha musical, das mais brilhantes do cinema brasileiro, pontuada por choros, sambas, serestas, mambos e boleros, gêneros musicais que encontram pronta identificação com os sentidos.


O comovente resultado final permite uma reflexão na forma de um retrato nu e cru da miséria metropolitana, tanto física como existencial. O exercício foi compensador: A Lira do Delírio arrebatou, no Festival de Brasília de 1978, os prêmios de Melhor Direção, Melhor Atriz, Melhor Ator Coadjuvante (Pereio), Melhor Fotografia e Melhor Montagem. Também mereceu do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, no mesmo ano, o Golfinho de Ouro para Melhor Direção.


Acima, o médico (Antonio Pedro) recebe Guri-Guri (Jorge Rocha de Lima) das mãos de Toni (Othoniel Serra); abaixo, nas mãos da polícia, o sequestrador Pereira (Tonico Pereira); à esquerda, Toni.


Uma fala de Pereio define toda a proposta desse belo e personalíssimo trabalho de Lima Jr.: “A vida dura só um dia; um porre, um gesto, um gemido, um canto, um pulo, um delírio”.





Argumento e Roteiro: Walter Lima Jr. Direção de fotografia (Eastmancolor) e câmera: Dib Lufti. Montagem: Mair Tavares, Amauri Alves. Cenografia: Regis Monteiro. Assistente de direção: Carlos Del Pino. Chefe-eletricista: Rui Medeiros. Chefe-maquinista: Paquetá. Música e direção musical: Paulo Moura. Direção de produção: Epitácio Brunnet, Elizabeth Fairbanks, José Carlos Escalero. Produção executiva: José Carlos Escalero. Assistentes de produção: José Carlos Aimi, Ricardo Miranda, Sérgio Villela, Antônio Carlos Amâncio, Márcio Santos. Assistente de fotografia: Mário Ferreira. Efeitos especiais de fotografia: Wilmar Meneses. Fotografia de cena: Fernando Teixeira de Freitas, Paulo Martins. Assistentes de câmera: Aroldo Telles, José Telles. Direção de som: Aloysio Vianna. Som direto: Mário da Silva, José Antônio Ventura. Efeitos sonoros: Geraldo José. Assistente de som: Marcus Vinicius. Assistentes de montagem: Raul Soares, Sílvio Soares, Idê Lacreta. Créditos: Daniel Azulay. Figurinos e guarda-roupa: Nazareth Teixeira. Fotografia adicional: João Carlos Horta, Renato Laclete. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1979)

4 comentários:

  1. Eugenio,

    Assisti Ele, O Boto sem jamais pensar no diretor. Não o conhecia, mas conhecia o ator do filme, o Ricelli, de quem era simpatizante.

    No entanto, terminei gostando muito do filme. Uma bem aceitável película.

    Hoje passa um programa no HBO, comandado pelo Rubens Ewald Filho, intitulado OS 50 MELHORES FILMES BRASILEIROS. E semanal e já vi uns 4.

    Só que o Ewald convida sempre bons diretores para comentarem com ele sobre os filmes do episósio.
    E num destes eu conheci o Walter Lima Jr.
    Ouvindo-o falar fiquei atento ao que dizia, como dizia, sua postura, maneira de fazer comentários e tudo o mais.
    Usei aquele tipico olhar observador de quem gosta de comentar. Fiz assim e atentei para ele, gostando muito de observar sua presenta e logo me interessando pelo diretor.
    Ora; se ele fala de cinema assim, deve então ser um bom diretor.

    O filme Inocencia/83 eu vi passar diversas vezes e jamais me despertou a atenção para ve-lo.
    No entanto, quando descobri que fora dirigido pelo Walter eu resolvi ve-lo. E isso foi há muito poucas semanas.

    E eis que adorei o filme. Leve, bom de assistir, paisagens bonitas, Sebastião Vasconcelos sempre ótimo, direção perfeita, ritimo da pelicula agradável e tudo o mais.

    Então rebusquei a filmografia do Walter e observei que já havia visto dele mais Ele, O Boto, onde o acabei de definir como um diretor de boa qualidade e que sempre nos fornece belas películas.

    Entretanto, nunca vi Lira do Delírio. Sabia de algo sobre ele de uma cena no Carnavel onde quase matam a mulher, pois a cena foi feita sem roteiro e a turma de malandros caiu mesmo em cima da atriz.

    Fiquei curioso, mas nunca tive oportunidade de assisti-lo. E agora vejo o amigo editor falar de coisas interessantíssima do filme me aguçando a curiosidade de ve-lo ainda mais. Para completar a cena do carnaval está também em sua descrição, o que prova que o que ouvira falar era verdade.

    Estou então pronto para ver Lira tão logo tenha uma oportunidade. E ele passa vez em quando no Canal Brasil, o que me alegra pois, adorei a matéria e uma nova fórmula de fazer cinema do Walter nesta fita.

    jurandir_lima@bol.com.br


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    1. Walter Lima Jr. é dos melhores diretores do cinema brasileiro, Jurandir, desde que se lançou no metier com o sensível "Menino de engenho", em 1965. O direito perdeu um advogado e o cinema ganhou um diretor afinado. Tive a oportunidade de conhecer o Walter na mostra dedicada ao John Ford, exibida no Rio de Janeiro, pelo CCBB, em 2010. Assistimos juntos ao filme preferido dele, "O sol brilha na imensidão", que já foi chamado de "O sol brilha na imensidade". Não preciso dizer que ao terminar a sessão, estávamos com os olhos marejados. Falando no John Ford, veja bem como são as coisas... Sabe quem indicou o Ben Johnson para o diretor Peter Bogdanovich, para viver o personagem Sam the Lion em "A última sessão de cinema"? O John Ford. Ben Johnson ganhou um Oscar de Melhor Ator Coadjuvante pela interpretação. Aliás, ele ganhou outros sete prêmios pela interpretação neste mesmo filme: Globo de Ouro, BAFTA, Golden Boot, National Board of Review, National Society of Film Critics e New York Film Critics Circle.

      Abraços.

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  2. Eugenio,

    E aqui para nós, ganhou com todo mérito.

    O Ben sempre atua com diferenciação. Basta se notar ele num filme e percebe-se logo que ali está alguém diferente, que sabe pisar, fumar, sorrir, fazer cara de insatisfeito, gritar, fazer face de dó e tudo o mais.

    Preste atenção a ele em cada filme dele que assistir. Eu descobri isso apenas porque ele, o Ben, me fez ver isso.

    Não sei se existiram atores que so fizeram papéis secundários melhor que ele, não sei.

    Podiamos citar o Lee Marvin, o Van Cleef e mais uns outros.
    No entanto, todos eles tiveram várias chances como ator principal, enquanto o Ben teve em apenas aquele filme do Ford, Caravana de Bravos/50, fita que não vi.

    Mas olhe bem para ele, para o jeito que ele deixa seu rosto ganhar depois que toma aquele soco de Ladd em Shane. Nunca vi expressão de imediato respeito junto com medo num momento só. Perfeito.

    Caramba, Eugenio! Era apenas para citar a primeira frase e veja onde estou! Abraço

    jurandir_lima@bol.com.br


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    1. Ben Johnson sempre foi grande, Jurandir. Ford o escalou para protagonizar o belo "Caravana de bravos" porque tanto ele como o Harry Carey Jr. tinham os "rostos naturais da inocência". Foi também o Ford que deu a ele a primeira oportunidade, ao descobri-lo num rodeio.

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