domingo, 14 de fevereiro de 2016

FUNDAMENTALISMO HASSÍDICO E MISOGINIA POR AMOS GITAI

Amos Gitai é internacionalmente reconhecido como o cineasta mais importante de Israel. Além do posicionamento político progressista e independente, ostenta filmografia marcada pela generosidade do olhar etnográfico. Kadosh: laços sagrados (Kadosh, 1999), sua trigésima sétima realização, só pôde ser concretizada com suporte francês. Os organismos israelenses de fomento ao cinema recusaram qualquer apoio. Apesar dos prêmios recebidos, atraiu a fúria de setores religiosos e secularizados do judaísmo pelo que seria abordagem parcial, empobrecedora e preconceituosa da ortodoxia hassídica. Mereceu protestos quando lançado no Brasil, principalmente no Rio de Janeiro e em São Paulo. Ambientado na comunidade de Mea Shaerim, em plena Jerusalém contemporânea, expõe o status subalterno das mulheres, relegadas, segundo os rigores da interpretação essencialmente masculina da Torá, apenas ao papel de procriadoras. No centro da narrativa está o doloroso drama de Rivka (Yaël Abecassis), estigmatizada pela vigilância comunitária por não gerar filhos após casamento de 10 anos com Meïr (Yoram Hattab), filho do zeloso e duro rabino Shimon (Yussuf Abu-Warda). Talvez Gitai tenha carregado nas tintas. Mas não se pode negar a Kadosh: laços sagrados o grau de peça cinematográfica exemplar, inclusive na abordagem da questão chave: o peso da determinação comunitária sobre a racionalidade individual, problema central de qualquer fundamentalismo religioso. A apreciação a seguir é de 2000.






Kadosh: laços sagrados

Kadosh

Direção:
Amos Gitai
Produção:
Amos Gitai, Michel Propper
Agav Hafakot, MP Productions
Israel, França — 1999
Elenco:
Yoram Hattab, Meital Barda, Uri Ran-Klausner, Yussuf Abu-Warda, Leah Koenig, Sami Huri, Rivka Michaeli, Samuel Calderon, Yaël Abecassis, Noa Dori, Shireen Kadivar, Amos Gitai.



O diretor Amos Gitai


Amos Gitai é o cineasta mais prestigiado de Israel, ao menos no plano internacional. Internamente, devido aos filmes e ao posicionamento político progressista e independente, é bastante criticado e mal visto por fundamentalistas e setores secularizados. Kadosh: laços sagrados[1], trigésimo sétimo título de uma filmografia diversificada e politicamente comprometida, despertou fúria generalizada à direita e à esquerda. Sempre reconhecido pela mirada etnográfica, Gitai recebeu acusações que o lançaram na conta de estereotipador do comportamento e da visão do judaísmo hassídico, principalmente com respeito às crenças e rituais. Grotesco, leviano, errôneo, melodramático, exagerado e profano são alguns termos desferidos como anátemas a ele e à realização. No Brasil, cumpriu discreta carreira nos cinemas. Mesmo assim, foi alvo de protestos de grupos afinados com o judaísmo e o Estado de Israel, no Rio de Janeiro e em São Paulo.


As dificuldades começaram na pré-produção. Os organismos israelenses estatais, responsáveis pelo fomento à indústria cinematográfica, recusaram qualquer apoio. Verbas francesas garantiram a realização. De certa forma — graças ao prestígio do diretor —, facilitaram a inclusão de Kadosh: laços sagrados no Festival de Cannes de 1999, com Gitai indicado à Palma de Ouro de Melhor Direção. A seguir, vieram aclamações e prêmios em outras mostras e festivais na Europa, América e Ásia: venceu o British Independent Film Award como Melhor Realização Estrangeira e recebeu láurea da National Board of Review dos Estados Unidos em 2000 na categoria Liberdade de Expressão. Nesse mesmo ano foi nominado ao prêmio de Melhor Filme Asiático no Festival Internacional do Filme de Singapura, quando se saiu vitorioso como Melhor Roteiro, escrito por Eliette Abecassis e Amos Gitai.


Kadosh: laços sagrados narra com simplicidade uma história dramática de forte apelo emocional. São poucos os cenários. As ambientações estão concentradas em ambientes fechados, quase sempre. Os movimentos de câmera são mínimos e suaves. A decoração é despojada, praticamente reduzida ao básico, como convém à trama e aos personagens. Estes se movimentam na comunidade de Mea Shaerim, espécie de enclave ultraortodoxo hassídico em plena Jerusalém contemporânea. O drama privilegia, essencialmente: Rivka (Abecassis), esposa de Meïr (Hattab) e irmã mais velha de Malka (Barda). Esta é praticamente obrigada ao casamento sem amor com Yossef (Ran-Kausner), apesar de cultivar laços afetivos com o excluído e mundano cantor de rock Yaakov (Hori). Ainda há Elisheva (Koenig) — mãe de Rivka e Malka — e o rabino Shimon (Abu-Warda).


Rivka, interpretada por Yaël Abecassis


Do lugar e das funções reservadas às mulheres na ortodoxia hassídica trata o filme. As leis da Torá ditam os costumes e reservam aos homens franco poder decisório. Cabe-lhes o estudo da religião com a tarefa de interpretar os cânones e aplicá-los à vida prática. As diretrizes legais emanadas do Estado moderno e secular não contam. Este é um inimigo a vencer, segundo o ponto de vista messiânico em vigor na comunidade de Mea Shaerim. As mulheres estão relegadas à subalternidade e ao espaço privado do lar. Prioritariamente, devem gerar os filhos de Israel segundo os imperativos da tradição divina, preferencialmente em significativa quantidade. Espera-se que a prole engrosse as fileiras da ortodoxia, para, no porvir, haver força e número suficientes ao combate a travar contra o mundo laico, sempre uma ameaça. Importa crescer e multiplicar. Por isso, os homens necessitam contrair matrimônio, obrigatoriamente. As esposas precisam ser férteis e mães dedicadas na atenção aos filhos. Devem gerar, educar, cuidar do lar e, no limite, ocupar-se com algum ofício rentável, para liberar os maridos ao nobre, continuado e diuturno estudo da Torá.


Mas nem tudo é simples. A doce Rivka, casada há mais de dez anos com Meïr, filho do rabino Shimon, ainda não concebeu. Aos olhos atentos da comunidade é uma mulher incompleta, seca e morta. Seu estado é frontal desrespeito às ordenações sagradas. Apesar de incomodado com a situação, o diligente Meïr ama Rivka. É marido carinhoso e atencioso. Por sua vez, ela faz o possível para corresponder ao papel que lhe foi atribuído. Ora e se purifica espiritualmente nos banhos rituais da mikvah, aplicados à comunidade feminina pela zelosa e preocupada mãe Elisheva. Infelizmente, a gravidez não vem. Em desafio às determinações comunais, Rivka consulta, em segredo, uma ginecologista. Descobre que é totalmente apta para a concepção. Os problemas da esterilidade estariam, então, com o marido. Porém, diante das normas é inconcebível alertá-lo a respeito. Muito menos convencê-lo ao exame clínico, de contagem de espermatozóides, pois um fiel filho de Deus não pode derramar em vão a própria semente. Portanto, não há como responsabilizá-lo.


Malka (Meital Barda), irmã de Rivka (Yaël Abecassis)


É sério o problema de Rivka. Sua individualidade — e dos demais personagens — não é levada em conta. Todos em Mea Shaerim estão sujeitos às determinações emanadas do grupo — uma teia orgânica de princípios, regras e mandamentos que abolem quaisquer sentimento e determinação próprios. A comunidade é uma totalidade regulada pela tradição divina em todos os seus aspectos. Vale a vontade de um Deus ancestral, imóvel, distante, absoluto. A isto reporta o título dado pelo termo "Kadosh". A tradução é "sagrado" — com os significados de "intocado" e "permanente", além de "separado" das coisas do mundo laico e profano. Portanto, trata-se de realidade contra a qual não cabem discussões. Restam apenas a submissão e aceitação. Ou se está dentro ou fora. O caminho do meio não é dado ou permitido. O desvio significa a entrada automática na condição de pária ou excluído.


A esfera sagrada da vida é destacada logo no começo, em plano de longa duração. Meïr desperta. Enquanto Rivka ainda dorme em cama separada, prepara-se ritualmente para mais um dia de orações e estudos na Yeshiva — espécie de escola religiosa — junto aos irmãos de fé. Começa a se vestir, fazendo-se acompanhar de extensa e detalhada oração. Praticamente renova o pacto com o Criador, que lhe concedeu a vida e não o deixou nascer mulher.


Meïr (Yoran Hattab), marido de Rivka Yaël Abecassis)

  
Na Yeshiva, Meïr será novamente advertido pelo pai a repudiar Rivka e tomar outra esposa. É o que deve fazer, ou não terá paz e disposição para se dedicar com empenho ao exame da Torá. Todas as suas atenções estão voltadas ao crucial problema de Rivka e ao falatório despertado na comunidade pela situação. Mesmo assim, tenta resistir aos apelos. Mas a autoridade paterna, dada por Deus, é superior. Deve ser ouvida e acatada. As palavras de Shimon são fortes — ainda mais para plateias ocidentais ou outras, avessas ou estranhas aos princípios e costumes do fundamentalismo judaico. Toda a preleção é voltada para Rivka, ao papel da mulher e à santidade esperada do casamento: "O único dever de uma filha de Israel é trazer crianças judias ao mundo e permitir ao seu marido o estudo da Torá, atividade da qual ela participa indiretamente: limpando, cozinhando e, principalmente, criando seus filhos. A mulher não tem outra finalidade que não a criação dos filhos. Sem filhos não poderemos vencer os ímpios e o governo laico deste país. (...) Um casamento de 10 anos sem filhos... Você deve tomar outra mulher para crescer e multiplicar-se. Uma mulher não vive senão para aquele que a usa. Uma mulher estéril não é mulher. Um homem que morre sem descendentes rasga uma página da Torá".


A sorte de Rivka está lançada. Meïr sucumbe à autoridade paterna e religiosa. Acordos firmados à sua revelia lhe providenciam outra esposa. Deprimida e abandonada, a primogênita de Elisheva só encontrou saída na submissão à letra da lei: permanecerá na comunidade na condição de excluída, moradora de pequeno apartamento. Malka, igualmente subjugada, terá, ao menos, posicionamento mais ativo e em proveito próprio. Obrigada ao casamento com o fanático e bruto Yossef, ver-se-á reduzida apenas à condição de vaso reprodutor numa união desprovida de qualquer afeto. A situação reacende o amor que sentia por Yaakov. Voltará a procurá-lo, mesmo sabendo das consequências da infidelidade a uma adúltera em Mea Shaerim. Ao fim, recusará destino igual ao da irmã. Por mais doloroso que seja, abandonará a comunidade por uma inserção na impessoalidade legal do mundo secular.




Acima e abaixo: Rivka Yaël Abecassis) e Meïr (Yoran Hattab)


Sobre Amos Gitai caíram acusações típicas. De certo modo, fosse o autor não um cineasta, mas escritor ou acadêmico, não seria diferente. Quase sempre uma mirada voltada a um grupo específico e fechado — facilmente destacado do meio social mais amplo por causa de crenças e costumes — resultaria em acusações, não importa a identidade de quem se lançou na missão de desvendamento. Ainda mais por Gitai ter, de fato, abusado da liberdade criativa no tratamento dos hassídicos. Se houve tentativa propositada de reduzi-los à excentricidade mais óbvia, não há como afirmar, pois falta-me o necessário conhecimento. Para os críticos mais denodados de Kadosh: laços sagrados, se a abordagem simplista não foi intencional consequência da falta de estudo mais acurado da parte dos roteiristas, deveria o cineasta buscar consultoria abalizada. Ao menos para não cair em erros que saltam aos olhos — alegam os detratores —, como na recriação dos banhos na mikvah, encenação das orações matinais de Meïr, cerimônia de casamento de Malka e particularmente no tratamento dado às mulheres. Os inimigos do filme e de Gitai os acusam de trilhar propositalmente o caminho mais fácil: a redução dos hassídicos a um risível grupo de fanáticos. O desserviço prestado seria considerável, pois cineasta e obra teriam apenas empobrecido um vasto repertório cultural, repleto de variações, ao transformá-lo em monolítica estrutura. Assim, Kadosh: laços sagrados não só maculou a ortodoxia com surrados clichês como reforçou os preconceitos utilizados durante séculos pelos inimigos do judaísmo, inclusive os nazistas.


Por outro lado, apoiado na liberdade criativa e por um ponto de vista eminentemente autoral, talvez Gitai tenha se servido propositalmente da infidelidade do olhar, exatamente para se ver livre de qualquer identificação com grupos e facções. Provavelmente, escaldado como é, já previa críticas. Vacinado, tentou a abordagem generalizada e abrangente. Se não deu certo, paciência! Porém, abrindo mão de todos os preciosismos, sobressai-se o básico. Kadosh: laços sagrados é muito bom como cinema e denúncia. Seu brado não se limita apenas ao tratamento das mulheres pela ortodoxia hassídica. Alcança todos os fundamentalismos religiosos, particularmente os herdeiros da matriz abraâmica: judaico, cristão e islâmico, todos igualmente pródigos na construção e apresentação de argumentos religiosos baseadas na obediência cega à letra da lei sagrada emanada da Torá, Bíblia e Alcorão; avessos a qualquer negociação com as prerrogativas do mundo laico em suas bases modernas e firmadas na tolerância, respeito às determinações individuais e aceitação dos princípios da igualdade e da diferença.


Meïr (Yoran Hattab) e seu pai, o rabino Shimon (Yussuf Abu-Warda)


Talvez Gitai tenha carregado nas tintas. Mas a concepção puramente cinematográfica de Kadosh: laços sagrados parece dizer que não. A câmera não assume, em momento algum, posição invasora ou apelativa, como se estivesse de prontidão para desvendar e ampliar detalhes mórbidos e sórdidos. As lentes observam da forma a mais objetiva possível. Há um distanciamento respeitoso na exposição dos personagens, mesmo quando proximamente focalizados. Inclusive os mais antipáticos como o rabino Shimon, Elisheva e Yossef estão preservados no que possuem de humanidade. Há, por todos eles, uma espécie de carinho e respeito. A principal preocupação do filme, sempre, é ressaltar a oposição entre determinação comunitária e liberdade individual. Dessa contradição padecem principalmente Rivka — intimamente — e Malka. Lentamente a câmera se abre à revelação de um processo erosivo instalado nas almas dessas mulheres, obrigando-as às escolhas determinantes de suas vidas. De todo modo, é sempre o peso da imposição comunitária que se faz presente. Rigorosamente, é tudo muito bem filmado, apesar da tocante simplicidade no tratamento da narrativa. O som é discreto, às vezes imperceptível. É uma realização de muitos silêncios no convite que faz ao espectador para participar da intimidade dos personagens e compartilhar de seus estados anímicos.


Na Yeshiva, no estudo da Torá: Meïr (Yoran Hattab) e, à esquerda, Yossef (Uri Ran-Klausner)


Até o momento mais desconcertante só é assim percebido quando descontextualizado: a noite de núpcias de Malka. Não é o que esperava, ainda mais depois de ouvir a exposição de Rivka sobre a primeira vez com Meïr, sempre contido, delicado e carinhoso. Yossef é totalmente diferente. Brusco, qual robô descontrolado, possui a esposa como ato de obrigação, numa relação desprovida de qualquer apelo sensual, reduzida ao dado mais maquinal e operacional. Se não fosse a total falta de habilidade do parceiro, poder-se-ia afirmar que Malka sofreu violento estupro. Mas é essa específica noite de núpcias que confirma, segundo as palavras do rabino Shimon, o papel das mulheres como instrumentos de reprodução e nada mais. Percepção mais instrumentalizada, impossível. Certamente, na chocante posse de Malka por Yossef reside a centralidade da mensagem exposta por Kadosh: laços sagrados. Não é algo exclusivo da ortodoxia hassídica, mas de todas as religiões fundamentalistas, misóginas, que posicionam o feminino no patamar mais inferior e imediatizado da esfera social.


Rivka (Yaël Abecassis) com a irmã Malka (Meital Barda)


No plano das atuações, sobressai-se Yaël Abecassis com sua silenciosa, doce e emotiva Rivka. Ao olhar ocidentalizado seria uma romântica desprovida de espaço. A seguir vem Meital Barda no papel Malka. O filme é das mulheres, mas não se pode esquecer Yoram Hattab como o subjugado Meïr.


Apesar da prisão comunitária, Gitai concedeu às irmãs estreitas mas diferentes possibilidades de recusa aos imperativos que recaiam sobre suas vidas. A opção de Rivka foi mais trágica e íntima. Mas cada qual pode agir e erguer barricadas para resistir à inflexibilidade de uma vontade erguida entre as faixas do absoluto e extramundano.






Roteiro: Eliette Abecassis, Amos Gitai. Produção associada: Roberto Cicutto, Laurent Thiry, Laurent Truchot. Produção de linha: Shuki Friedman. Música: Philippe Eidel, Louis Sclavis. Direção de fotografia (cores): Renato Berta. Montagem: Monica Coleman, Kobi Netanel. Produção de elenco: Levia Hon, Ilan Moscovitch. Desenho de produção: Miguel Markin. Figurinos: Laura Dinolesko. Gerente de produção: Saul Kleiman. Continuidade: Gadi Nemet. Consultoria artística: Ilan Moscovitch. Planejamento de som: Alex Claude. Assistente de som: François Fayard. Edição de som: François Fayard. Mixagem da regravação de som: Cyril Holtz. Mixagem de som: Michel Kharat. Efeitos digitais do trailer: Yaron Yashinski. Assistentes de câmera: Miki Berdougo, Berdougo Michael, Gaby Weismann. Eletricista-chefe: Philippe Cadeau. Controle de foco: Jean-Paul Toraille. Sistema de mixagem de som: Dolby SR. Tempo de exibição: 110minutos.


(José Eugenio Guimarães, 2000)



[1] Estreou no Brasil com este título. Porém, como é comum acontecer no país, as denominações mudam ao saber das circunstâncias. Atualmente é identificado como Kadosh — Abençoados, segundo o IMDb: http://www.imdb.com/title/tt0189630/?ref_=fn_al_tt_1