domingo, 20 de novembro de 2016

A VELHICE: O MELHOR PRESENTE DE JACK LEMMON PARA O AMIGO WALTER MATTHAU

De filmes sobre a velhice nas sociedades orientais e ocidentais o cinema está repleto. Pelos meus conhecimentos, David Wark Griffith é pioneiro com What shall we do with our old? (1911). Desde então, as realizações são constantes e os tratamentos, não raro, resultam convincentes e apropriados: A cruz dos anos (Make way for tomorrow, 1937), de Leo McCarey; Humberto D. (Umberto D., 1952), de Vittorio De Sica; A balada de Narayama (Narayama bushikô, 1983), de Shôhei Imamura; Amor (Amour, 2012), de Michael Haneke; Morangos silvestres (Smultronstället, 1957), de Ingmar Bergman; Era uma vez em Tóquio (Tôkyô monogatari, 1953), de Yasujirô Ozu... Ainda há lugares para os brasileiros Em família (1971), de Paulo Porto, Chuvas de verão (1978), de Carlos Diegues e Copacabana (2001), de Carla Camurati, além de westerns como Pistoleiros do entardecer (Ride the high country, 1962), de Sam Peckinpah, cineasta que, de certa maneira, sempre considerou a temática em sua mirada crepuscular do velho Oeste. Infelizmente, pouquíssimos conhecem o único filme que Jack Lemmon ousou dirigir: Ainda há fogo sob as cinzas (Kotch, 1971). É deliciosa comédia dramática acerca das emocionantes aventuras e desventuras do setentão aposentando Joseph P. Kotcher (Walter Matthau) em busca de lugar numa sociedade que recusa o ancião. Pelo desempenho, o protagonista foi indicado ao Oscar e ao Globo de Ouro. A realização é, na justa medida, um presente do ator e diretor ao colega e amigo. Ambos formaram uma das mais inspiradas parcerias do cinema. A apreciação a seguir, de 1975, passou por revisão e ampliação em 1997. 







Ainda há fogo sob as cinzas
Kotch

Direção:
Jack Lemmon
Produção:
Richard Carter
American Broadcasting Company (ABC), Kotch Company Productions
EUA — 1971
Elenco:
Walter Mathau, Deborah Winters, Felicia Farr, Charles Aidman, Ellen Geer, Donald Kowalski, Dean Kowalski, Arlen Stuart, Jane Connell, James E. Brodhead, Jessica Rains, Darrell Larson, Biff Elliot, Paul Picerni, Lucy Saroyan, Kim Hamilton, Tamar Cooper, Amzie Strickland, Paul Fiero, Larry Linville, Penny Santon e os não creditado Jack Lemmon, Janya Braunt, Dee Carroll, Jason Karpf.



Nos bastidores de Ainda há fogo sob as cinzas (Kotch): O diretor Jack Lemmon e, no colo de Walther Matthau - intérprete de Kotch -, os bebês Donald e Dean Kowalski, que dão vida a Duncan



Juntos, Walter Matthau e Jack Lemmon formam uma das mais brilhantes e inspiradas parcerias do cinema. Talentosos, conquistam de imediato a cumplicidade do público. Mesmo quando atuam em obras pouco interessantes vale a pena marcar lugar diante da tela para vê-los. Os desempenhos que oferecem e a reação que provocam bastam para salvar o dia. O gênio Billy Wilder foi o primeiro a perceber as possibilidades da dupla em Uma loura por um milhão (The fortune cookie, 1966).


Jack Lemmon estava com a carreira mais que consolidada quando atuou em Uma loura por um milhão. Ganhara o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante por Mr. Roberts (Mr. Roberts, 1955), iniciado por John Ford e concluído por Mervyn LeRoy. Vinha confirmando o talento em interpretações memoráveis para Billy Wilder em Quanto mais quente melhor (Some like it hot, 1959), Se meu apartamento falasse (The apartment, 1960) e Irma la douce (Irma la douce, 1963); Delmer Daves em Como nasce um bravo (Cowboy, 1958); e Blake Edwards em Vício maldito (Days of wine and roses, 1962) e A corrida do século (The great race, 1965). Em 1974 receberia o Oscar de Melhor Ator[1] por Sonhos do passado (Save the tiger, 1973), de John G. Avildsen.


Uma loura por um milhão rendeu melhores frutos para Walter Matthau. De baixa evidência, o ator parecia condenado aos papéis menores. O cinema, até então, não lhe proporcionara grandes oportunidades. O motivo para a implicância, parece, era a expressão facial de cachorro pouco amigável. De repente, a surpresa! Sob as ordens de Billy Wilder ganha o Oscar de Melhor Ator Coadjuvante. Em consequência, melhoram consideravelmente as oportunidades de trabalho e as chances de demonstrar talento. A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood lhe oferece novas oportunidades para o Oscar: indica-o a Melhor Ator por Ainda há fogo sob as cinzas e Uma dupla desajustada (The sunshine boys, 1975), de Herbert Ross.


Uma loura por um milhão tem muitas qualidades, justamente o que se espera de Billy Wilder. Dessas, apenas uma seria suficiente: ter reunido, pela primeira vez, Jack Lemmon e Walter Matthau. A partir daí, firmou-se sólida amizade. O espectador felizardo pôde revê-los em O estranho casal (The odd couple, 1968), de Gene Saks — exemplo de obra menor valorizada pelo carisma e inspiração dos intérpretes —, no arrasador e impecável A primeira página (The front page, 1974), de Billy Wilder — que tornaria a reuni-los em Amigos, amigos, negócios à parte (Buddy buddy, 1981) —; Dois velhos rabugentos (Grumpy old men, 1993), de Daniel Petrie, e na continuação deste, Dois velhos mais rabugentos (Grumpier old men, 1995), de Howard Deutch.


Em 1971, com Ainda há fogo sob as cinzas, a parceria Lemmon-Matthau é renovada sob novo registro. Desta vez Jack permanece exclusivamente atrás das câmeras. Em sua única experiência como realizador teve o privilégio de dirigir o amigo Walter, ao qual concedeu oportunidade de uma interpretação que pode ser classificada, sem tirar nem por, como uma das mais sinceras do cinema. Não se sabe por quais motivos Lemmon não retornou à direção. Demonstrou mais que competência em Ainda há fogo sob as cinzas —, obra simples, sóbria e de concepção difícil. É comédia dramática situada a pouca distância do melodrama. Poderia, por isso, resvalar para o terrível pieguismo moralizador e edificante. Certamente, essa experiência única de Lemmon tinha objetivo único, que não o de lançar um cineasta, mas de render homenagens ao amigo: mostrar aos críticos e público, ainda desconfiados e inseguros, o valor de Walter Matthau.



Acima e abaixo: Walter Matthau como o senhor Joseph P. Kotcher, apelidado de Kotch


O roteiro de John Paxton adapta novela de Katharine Topkins: Kotch. O título é diminutivo carinhoso para o senhor Joseph P. Kotcher, setentão aposentado interpretado por Matthau. Mora com o filho Gerald (Aidman), a nora Wilma (Farr) e o neto, o bebê Duncan (Donald Kowalski, Dean Kowalski). Atravessa a fase mais difícil para os ocidentais: a velhice. Nesse período, cessam as possibilidades e responsabilidades. O velho é desapropriado de tudo, inclusive da individualidade. Torna-se indigno de confiança. Perde todas as capacidades. Deve ter a vida governada por outros, os mais novos — paradoxalmente considerados aptos e capacitados para a vida.


Kotch (Walter Matthau) mora com o filho Gerald (Charles Aidman) e a nora Wilma (Felicia Farr)

Kotch (Walter Matthau) experimenta a rejeição: quem quer saber da conversa de um idoso?


Se dependesse de Wilma, o sogro estaria, há muito, no asilo. Tenta convencer o marido a interná-lo o quanto antes. Seria medida mais que sensata, alega! Vê Kotch como fonte permanente de preocupação. Principalmente porque, para conferir sentido ao tempo livre, insiste em se fazer útil — dispensando cuidados ao neto acima de tudo. Para afastá-lo do pequeno Duncan, Wilma contrata uma babá, a jovem Erica Herzenstiel (Winters), que se apresenta com um problema: está grávida do namorado Vincent Perrin (Larson), que não a deseja nesse estado. É despedida quando a gravidez alcança maior relevo. Sem ter a quem apelar, Erica ganha o mundo. Pretende abandonar o filho assim que der a luz.


Paralelo a esse drama, e dele de início distanciado, há o problema do indômito Kotch. Pressente que o asilo é possibilidade cada vez mais próxima. Aproveita a situação para viajar. Ao voltar, é recebido com frieza, como um menino irresponsável a merecer o carão dos pais. Aborrecido, parte novamente, para a estação de veraneio de Palm Springs — onde encontra Erica. A garota, ainda sem pouso certo, está nos últimos momentos da gravidez. Kotch resolve ajudá-la. Convida-a a ficar no chalé que alugou até o nascimento do bebê. Mostra-se participativo em tudo. Acompanha-a em todas as ocasiões e presta conselhos quanto ao futuro. Tenta convencê-la a não abandonar o filho. Kotch revela que ainda transpira muita energia, apesar da idade. Ou como bem indica o feliz título no Brasil, “ainda há fogo sob as cinzas”. Adquire um berço e resolve montá-lo, sequência primorosa e preciosa que o mostra atrapalhado entre peças, ferramentas, manual de instruções etc. — até se ver vitorioso. Na hora H, faz o parto de Erica. Ela, por artes da natureza, dá à luz em banheiro de beira de estrada.



Acima e abaixo: Kotch (Walter Matthau) e Erica Herzenstiel (Deborah Winters)


A jovem mãe continua algum tempo com Kotch. Ao partir, informa que não abandonará o filho e fará de tudo para mantê-lo. O curto período de convivência com Erica e o recém-nascido devolvem a autoestima ao senhor Joseph P. Kotcher. Está só, mas feliz, fortalecido e confiante. Recusa o pedido de voltar para casa, feito pelos arrependidos Gerald e Wilma.


Despretensioso, amargo, precisamente ritmado, poético, irônico, bem humorado, contagiante, Ainda há fogo sob as cinzas é artigo cada vez mais raro no universo do cinema: o filme de ator. Nesse particular, dirigido por um ator para engrandecimento de um colega e amigo. É uma delícia ver Walter Matthau em cena, no lento caminhar de idoso, a expressão ranzinza carregada de ternura, os óculos a conferir leveza aos olhos cansados, o chapéu Panamá na ocultação da idade denunciada pelos cabelos brancos. É daqueles filmes que, na falta de melhor qualificativo, costumam ser chamados de “humanos”. Assim é: Ainda há fogo sob as cinzas é muito humano, bom e agradável de ver. Kotch deixa o espectador engrandecido com os aspectos complicados da vida que leva. Mas não é personagem ao qual lançar olhares condoídos. Longe disso! Joseph P. Kotcher não inspira pena, dor ou sofrimento. Filme e personagem redimem aqueles que os privilegiam. Fazem-nos refletir em meio a um e outro riso amargo.


Kotch (Walter Matthau) e Erica Herzenstiel (Deborah Winters)


Felicia Farr, a intérprete de Wilma, é esposa de Jack Lemmon. O diretor tem pequena aparição não creditada.


Walter Matthau recebeu indicação ao Oscar de Melhor Ator e ao Globo de Ouro em igual categoria por interpretação em Comédia ou Musical. Venceu como Melhor Ator — empatado com Gene Hackman por Operação França (The French connection, 1971), de William Friedkin — a premiação do Kansas City Film Critics Circle. Ainda há fogo sob as cinzas teve indicação ao Globo de Ouro de Melhor Filme/Comédia ou Musical. Nessa ocasião, John Paxton foi nominado a Melhor Roteiro e venceu o Writers Guild of America por Melhor Roteiro Adaptado. Por Melhor Música e Melhor Canção — Life is what you make it marcou época —, os compositores Marvin Hamlisch e John Mercer foram indicados ao Oscar. Venceram o Globo de Ouro por Melhor Canção Original.


Kotch (Walter Matthau) no hospital

  
A Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood também indicou Richard Portman e Jack Solomon por Melhor Som e Ralph E. Winters por Melhor Montagem. Este também concorreu ao prêmio do American Cinema Editors.





Direção de fotografia (Metrocolor): Richard H. Kline. Montagem: Ralph E. Winters. Créditos: Pacific Title, Jeremy Lepard. Locações: Cinemobile Systems, Ruth Carier. Música: Marvin Hamlisch. Canção: Life is what you make it, de Johnny Mercer (letra) e Marvin Hamlisch (música). Roteiro: John Paxton, baseado na novela Kotch, de Katharine Topkins. Figurinos: John A. Anderson. Controles: Kenneth Adams. Coordenação de produção: Maria Luiza Alcaraz. Penteados: Jean Austin. Supervisão de produção: Leon Chooluck. Direção de diálogos: Alan DeWitt. Contrarregra: Susan Dworsky, Richard M. Rubin. Produção de elenco: Barbara Gallagher. Administração: Tim Griffith. Orquestração: Jack Hayes, Leo Shuken. Assistente de direção: Harry Hogan III, Charles Dismukes. Consultor técnico: Henry L. Jaffe. Decoração: William Kiernan. Supervisão de script: Joe Mazzuca. Direção de arte: Jack Poplin. Maquiagem: Harry Ray. Assistente de montagem: Irving Rosenblum. Som: Jack Solomon. Efeitos sonoros: Frank E. Warner. Supervisão da regravação de som: Richard Portman. Efeitos especiais: Jack Erickson. Assistentes de câmera: Kenneth Adams, Eric D. Andersen (não creditado), Hal Shiffman (não creditado). Eletricista-chefe: Tim Griffith. Fotografia de cena em locações: Ruth Carter (não creditado). Operador de câmera: James R. Connell (não creditado). Fotografia de cena especial: Robert Willoughby (não creditado). Mixagem da trilha musical: Dan Wallin (não creditado). Publicidade: Art Sarno (não creditado). Estúdios para interiores: Samuel Goldwyn Studios. Estúdio de regravação de som: Samuel Goldwyn Studios. Tempo de exibição: 113 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1975; revisto e ampliado em 1997)



[1] Lemmon recebeu indicações ao Oscar de Melhor Ator por Tributo (Tribute, 1980), de Bob Clark, e O desaparecido, um grande mistério (Missing, 1982), de Konstantinos Costa-Gavras.