domingo, 1 de janeiro de 2017

NA SOLIDÃO POLAR DE UM BOM TELEFILME DOS ANOS 70

Durante os anos 70, a TV Globo importou dos Estados Unidos o programa televisivo World Premiere, aqui vertido para Premiere Mundial. Teve por exagerado slogan "A televisão na frente do cinema". Exibia apenas telefilmes — nas noites de sábado —, a maioria destituída de qualquer interesse. Entre as honrosas exceções estava A morte numa noite fria (A cold night's death, 1972), de Jerrold Freedman. Com apenas 74 minutos, é uma instigante e assustadora mescla de suspense, horror, drama psicológico e ficção científica que tira partido, como raramente foi feito, de orçamento reduzido, cenários claustrofóbicos, diálogos, iluminação, música eletrônica e interpretações. Basicamente, conta apenas com dois bons atores: Robert Culp e Eli Wallach. Vivem, respectivamente, os pesquisadores Robert Jones e Frank Enari, responsáveis por levar adiante um estudo que avalia o comportamento de chimpanzés submetidos a condições extremas. Estão instalados em isolada e praticamente inacessível estação de pesquisa erguida em paragens geladas. Assombra-os a inexplicável morte por congelamento do solitário antecessor, trancado pelo lado de fora em uma sala que, entretanto, permaneceu com as janelas abertas. O mistério aumenta com a alusão do envolvimento de improváveis personagens que marcaram a História — Gengis Khan, Alexandre o Grande, Napoleão Bonaparte etc. — no falecimento do cientista. Segue apreciação escrita em 1974.







A morte numa noite fria
A cold night's death

Direção:
Jerrold Freedman
Produção:
Paul Junger Witt
Spelling-Goldberg Productions, ABC Circle Films
EUA — 1972
Elenco:
Eli Wallach, Robert Culp, Michael C. Gwynne e o não creditado Vic Perrin.



O diretor Jerrold Freedman



Jerrold Freedman confirma: há vida inteligente no pobre planeta dos telefilmes. Sim, é isto: A morte numa noite fria integra um conjunto de realizações originalmente produzidas para a televisão com exibição, no Brasil, nas noites de sábado, pelo programa Première Mundial, da TV Globo, ao longo dos 70. A emissora verteu ao pé da letra o título do original estadunidense, World Premiere, inclusive incorporou o exagerado lema: "A televisão na frente do cinema". A maioria dos filmes mostrados era destituída de maior interesse. Uma das honrosas exceções é A morte numa noite fria, instigante mescla de suspense, horror, drama psicológico e ficção científica.


O motivo deflagrador dos trágicos acontecimentos que assombram a história parece ser, em princípio, a claustrofóbica solidão e suas consequências sobre homens vivendo e trabalhando em condições climáticas extremas. No entanto, logo se percebe: algo mais terrível está à espreita. A ação se desenrola na Tower Mountain Research Station, centro de pesquisa em inóspita e sempre nevada região na Antártida. Aí o programa espacial realiza, há quatro anos, experimentos comportamentais com chimpanzés. Os animais passam por situações como: restrição alimentar e de água, dor, choques térmicos, medo, inibição do sono, silêncio e sons elevados, escuridão e excesso de luminosidade etc.


A sensação de total isolamento da estação é ampliada pela altitude e dificuldade de acesso, vencida somente por helicóptero, mesmo assim em condições meteorológicas favoráveis. O enredo está armado sobre fundamentos muito simples, mas bem utilizados: diálogos, interpretação, ambientação e atmosfera garantida por corredores estreitos e escuros, o sopro permanente do vento gelado no exterior e a música, um trunfo da composição eletrônica da parte de Gil Mellé.


Os cenários, à base de corredores estreitos e parcamente iluminados, garantem o clima de claustrofobia e são um dos trunfos da realização

  
O que se conta ao longo de aproximados 75 minutos é assustador desde o começo. Enquanto a câmera se movimenta nervosamente do lado de fora da estação, contornando-a, ouve-se a voz desesperada do Dr. Vogel no interior. De início, o personagem não é mostrado. Pede socorro pelo rádio, pois poderá morrer a qualquer momento. Uma base distante é surda aos seus clamores, pois as comunicações estão cortadas devido ao tempo ruim. Articula palavras aparentemente sem nexo, alusivas a Napoleão Bonaparte, Gengis Khan, Alexandre o Grande e outros imperadores. Passados alguns dias, o céu se abre. Um helicóptero traz novos pesquisadores para render Vogel: Robert Jones (Culp) e Frank Enari (Wallach).




Os cientistas Robert Jones (Robert Culp, acima) e Frank Enari (Eli Wallach, ao centro) encontram, morto por congelamento, o colega Dr. Vogel


Encontram as instalações às escuras; móveis e equipamentos revirados; os animais prestes a sucumbir por inanição e frio. Na sala de comunicações, sentado como se estivesse a operar o rádio, está o corpo congelado de Vogel. Morreu estranhamente! A porta que separa o recinto do resto da instalação estava trancada por fora. A janela, entretanto, permaneceu aberta à entrada do frio fatal. Aparentemente o cientista se entregou à morte. Mas como foi trancado?


Assim que o corpo é despachado, Enari e Jones deixam a estação em ordem e reiniciam as atividades de pesquisa. No entanto, os questionamentos em torno da morte inexplicável do colega aumentam quando se percebe que os aproximados 300 metros gravados de fita utilizada na comunicação com a base estão em branco. Para complicar, as diferenças entre os recém-chegados logo se acentuam. Enari, resguardado na objetividade que reveste o trabalho do cientista, quer apenas prosseguir com os testes, sem dar maior importância aos motivos que geraram a morte do antecessor. Jones, por sua vez, também cientista acurado, levanta interrogações: o que teria havido? Algo semelhante voltará a ocorrer?


A relação entre os pesquisadores Frank Enari (Eli Wallach) e Robert Jones (Robert Culp) logo se deteriora

Um dos chimpanzés com comportamento avaliado na estação de pesquisa


Posicionamentos tão diferentes, somados à solidão e aos mistérios que passam a acontecer, principalmente à noite, ampliam as desavenças. Luzes são acesas e desligadas sem causa aparente, a unidade de fabricação e tratamento de água deixa de funcionar, sons elevados dão lugar a silêncios prolongados, a cozinha é revirada e os alimentos espalhados, portas e janelas se abrem do nada, os macacos se agitam. Qual a fonte das anomalias? Alguém está à espreita? Quem? Como? Onde estaria? Enari desconfia de Jones. Estaria sabotando propositalmente as atividades, pois, supostamente, não revela aptidão para o rotineiro e disciplinado trabalho de pesquisa. Aos poucos, com a evolução da tensão e suspeita, o filme ganha contornos de suspense psicológico. Instala-se um aparente jogo de gato e rato. O personagem interpretado por Robert Culp, mais lógico, tenta preservar o equilíbrio, mas o cismado colega se perde na paranoia. Tornada incontrolável, a situação evolui para a tragédia. Nessa progressão, o espectador já presume o que ocorre. Certamente, as inteligentes cobaias, de nomes tão sugestivos, estão invertendo os papéis com os pesquisadores. Somente na cena final, quando for demasiado tarde, o mistério se esclarece por completo.


A direção mantém a tensão sempre em crescendo. Freedman é hábil na conjugação de elementos e recursos escassos. O clima de inquietação encontra aliado na música de Gil Mellé, à base de sintetizador. O compositor é um dos responsáveis pela voltagem que marcou a ficção científica O enigma de Andrômeda (The Andromeda strain, 1971), de Robert Wise.


Eli Wallach como o Dr. Frank Enari


Apesar de produzido para a televisão, A morte numa noite fria possui o dinamismo de peça cinematográfica na qual o fator obscuridade é parte do poder de atração. O desenvolvimento é sólido. O cenário reduzido e parcamente iluminado garante a atmosfera sempre espessa. O elenco é afinado. Conta praticamente com Robert Culp e Eli Wallach. Michael C. Gwynne passa pouco tempo em cena, logo no começo, como o piloto do helicóptero Val Adams. Vic Perrin (não creditado) comparece apenas como a voz do distante diretor do projeto Ryan Horner. Infelizmente, não se sabe o nome do responsável por Vogel.


O momento mais desesperador, próximo do final, capta Jones fora da estação, com os movimentos reduzidos devido ao frio excessivo e peso dos agasalhos, na lenta e exasperante atividade de abastecer com neve a central de produção e tratamento de água. Misteriosamente, a porta que lhe permitiria retornar ao interior é fechada. Com muito esforço e movimentos limitados, consegue arriscado reingresso pela unidade de produção de água, quando teve que se arrastar sobre neve e gelo.


Os 15 minutos finais, exasperantes, têm desenvolvimento deliberadamente lento. O epílogo é construído passo a passo, para assegurar o impacto definitivo no encerramento. Mesmo que o espectador tenha resolvido previamente o mistério pela mais lógica das deduções — antes mesmo do infeliz Jones —, o plano derradeiro não deixará de ser arrepiante.


O Dr. Frank Enari (Eli Wallach) tomado pela paranoia


Apesar de o título original ser A cold night's death, a realização também é conhecida, principalmente na Inglaterra, como The chill factor.





Música eletrônica: Gil Mellé. Direção de fotografia (cores): Leonard J. South. Roteiro: Christopher Knopf. Montagem: David Berlatsky. Produção executiva: Leonard Goldberg, Aaron Spelling. Produção associada: Robert Monroe, Tony Thomas. Direção de arte: Rolland M. Brooks. Decoração: Dave L. Love. Figurinos: Ray Harp. Maquiagem: Frank Westmore. Gerente de produção: Richard Caffey. Assistente de direção: Jon C. Andersen. Coordenação de construções: Gordon Fletcher. Contrarregra: Kenneth L. Westcott. Engenheiro de som: Herman Lewis. Edição de efeitos sonoros: Edward Rossi. Supervisão de produção de elenco: Bert Remsen. Edição musical: Kenneth Wannberg. Continuidade: Joyce King. Adestrador de animais: Ron Oxley. Companhia de créditos e efeitos óticos: Modern Film Effects. Tempo de exibição: 74 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1974)