domingo, 17 de dezembro de 2017

CARY GRANT VALORIZA A ÉTICA PIONEIRA E CONQUISTA KATHARINE HEPBURN

Holiday (1938), de George Cukor, é a segunda transposição para o cinema de famosa peça teatral de Philip Barry. Para azar do personagem principal, o íntegro e esforçado plebeu Johnny Case (Cary Grant), a realização recebeu no Brasil o estúpido e mentiroso título de Boêmio encantador. Nas emissoras de televisão não teve sorte melhor: foi rebatizada para Brotinho encantador e, nesse caso, alude ao papel da centrada e magnânima Linda Seton (Katharine Hepburn). A direção é de um mestre na condução de comédias sofisticadas valorizadas por situações enfáticas e diálogos precisos: George Cukor, que tantas confirmações de talento apresentou com As quatro irmãs (Little women, 1933), David Copperfield (The personal history, adventures, experience, & observation of David Copperfield the younger, 1935), Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940), Fatalidade (A double life, 1947), Nasce uma estrela (A star is born, 1954) e, entre outros, Minha bela dama (My fair lady, 1964). Boêmio encantador é a quarta das onze associações do diretor com a talentosa Katharine Hepburn. Ela e Grant estão afinadíssimos nessa comédia desenvolvida basicamente em interiores. Contam com o suporte de atores talentosos, dentre os quais o sempre impagável Edward Everett Horton como o espirituoso e sagaz Professor Nick Potter. Nos anos ainda quentes da Grande Depressão e do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, o filme elogia o mito da iniciativa individual característica dos pioneiros que ergueram os Estados Unidos e, supostamente, perseveraram sem sacrificar a integridade pessoal. Por outro lado, encena leve e divertido ataque à ética puritana da valorização do acúmulo da riqueza material a qualquer preço. Segue apreciação escrita em 1996.






Boêmio encantador
Holiday

Direção:
George Cukor
Produção:
Everett Riskin
Columbia
EUA — 1938
Elenco:
Katharine Hepburn, Cary Grant, Doris Nolan, Lew Ayres, Edward Everett Horton, Henry Kolker, Binnie Barnes, Jean Dixon, Henry Daniell, os não creditados Marion Ballou, Beatrice Blinn, Thomas Braidon, Maurice Brierre, Ralph Brooks, Mabel Colcord, Luke Cosgrave, Beatrice Curtis, Ann Doran, Neil Fitzgerald, Bess Flowers, Bobbie Hale, Mitchell Harris, George Hickman, Howard C. Hickman, Maude Hume, Raymond Lawrence, Eric Mayne, Tom McGuire, Matt McHugh, Frank McLure, Edmund Mortimer, George Pauncefort, Esther Peck, Hilda Plowright, Alexander Pollard, Charles Richman, Cyril Ring, Lillian West, Eric Wilton e em participações excluídas na montagem de Harry Allen, Frank Benson, Aileen Carlyle, Edward Cooper, Margaret McWade, Frank Shannon, Charles Trowbridge.



O diretor George Cukor - à esquerda - com os atores John Howard, Katharine Hepburn e Cary Grant
Bastidores de Núpcias de escândalo (The Philadelphia story, 1940)



Katharine Hepburn, atriz fetiche de George Cukor, atuou sob sua direção em onze filmes. Boêmio encantador — exibido na televisão brasileira como Brotinho encantador — é o quarto. Os anteriores: Vítimas do divórcio (A bill of divorcement, 1932), As quatro irmãs (Little women, 1934) e Vivendo em dúvida (Sylvia Scarlett, 1935). Reencontraram-se em Núpcias de escândalo (The Philadelpia story, 1940), O fogo sagrado (Keeper of the flame, 1942), À meia luz (Gaslight, 1944), A costela de Adão (Adam’s rib, 1949), A mulher absoluta (Pat and Mike, 1952), Amor entre as ruínas (Love among the ruins, 1974) e O coração não envelhece (The corn is green, 1979). Os dois últimos foram realizados para a TV.


Katharine Hepburn como Linda Seton


Além de Boêmio encantador, Hepburn estrelou, ao lado de Cary Grant, Vivendo no abandono, Levada da breca (Bringing up baby, 1938), de Howard Hawks — considerada por muitos a melhor comédia maluca do cinema — e Núpcias de escândalo.


Boêmio encantador é a segunda adaptação para as telas da peça teatral de Philip Barry. A primeira, de 1930, resultou em Holiday, de Edward H. Griffith, interpretada por Ann Harding, Mary Astor, Edward Everett Horton e Heda Hopper. Originalmente foi encenada no Teatro Plymouth de Nova York, em 1928. Na oportunidade, Hope Williams interpretou a protagonista Linda Seton. Coincidentemente, para o caso de imprevistos, Katharine Hepburn estava escalada como atriz substituta. Permaneceu três meses no posto e nunca foi acionada: Williams jamais faltou às apresentações. Importa, no caso cinematográfico: a estrela favorita de George Cukor estava familiarizada com o argumento e o papel quando foi chamada para viver Linda Seton no cinema. A princípio, a personagem seria de Irene Dunne — descartada por pressões do diretor quando Hepburn se apresentou disponível.


Cary Grant e Katharine Hepburn nos papéis de Johnny Case e Linda Seton 


São controversas as informações a respeito do desempenho de Boêmio encantador nas bilheterias. No artigo Cary Grant, um galã sofisticado, A. C. Gomes de Mattos atesta: “A fita não veio a ser o triunfo que a Columbia esperava”[1]. Porém, João Lepiane sustenta em Um monstro sagrado chamado Katharine Hepburn: o título foi “O segundo maior sucesso de bilheteria da Columbia naquele ano (1938)”[2].


O filme é uma comédia em tom menor, de nível infinitamente superior a qualquer uma das desmioladas produções cômicas do cinema estadunidense de hoje. Apesar de sofrer os implacáveis efeitos do tempo, permanece agradabilíssima. Está entre as muitas saudações prestadas por Hollywood, durante os anos 30 — época da Grande Depressão e do New Deal de Franklin Delano Roosevelt — à consciência liberal de “boa cepa”. Traduzindo: Boêmio encantador elogia a mítica iniciativa individual característica dos pioneiros que ergueram os Estados Unidos: seres determinados que construíram suas vidas a partir do próprio esforço e não admitiram sucumbir aos apelos da riqueza fácil conseguida, muitas vezes, às custas da integridade pessoal. O personagem Johnny Case (Grant) busca a felicidade anunciada pelos pais fundadores da nação e prometida em declarações, cartas de direitos e na própria Constituição.


Johnny Case (Cary Grant) discute matrimônio, negócios e futuro com a noiva Julia Seton (Doris Nolan) e o quase sogro Edward Seton (Henry Kolker)

Julia Seton (Doris Nolan) e Johnny Case (Cary Grant) surpreendidos por Linda Seton (Katharine Hepburn)

  
Case é um jovem plebeu. Apaixonou-se por Julia Seton (Nolan) sem saber que é milionária herdeira do banqueiro Edward Seton (Kolker). O pai — esquecido das pobres origens familiares — desaprova o pretendente. Depois de muitas ressalvas aceita o matrimônio. Porém, pretende enquadrar o futuro genro ao modo de vida da família. Júlia, carne e sangue de Edward, concorda. Parece não se importar com as ideias próprias do noivo. Afinal, a ele é oferecido importante e bem remunerado cargo nas empresas do patriarca. O que mais um pobretão poderia querer?


No entanto, as pretensões à independência do inconformado Johnny são apoiadas pela rebelde e infeliz Linda (Hepburn), irmã de Julia e, em menor escala, pelo mano Ned (Ayres). Para ela, a insaciável sanha do pai por dinheiro e posição social provocou a morte prematura da mãe. Quanto a Ned, é tolhido na vocação musical e obrigado a prestar serviços “mais úteis” no banco da família.


Doris Nolan, Katharine Hepburn, Cary Grant e Lew Ayres vivem, respectivamente, Julia Seton, Linda Seton, Johnny Case e Ned Seton

Linda Seton (Katharine Hepburn) e Johnny Case (Cary Grant)


No começo, Linda supunha que o rosto juvenil de Johnny ocultava apenas um inescrupuloso caçador de fortunas. Conhece-o melhor durante as muitas controvérsias em torno do matrimônio. Apaixonam-se, como é óbvio. Porém, a infeliz garota também é magnânima. Vê no casamento de Julia com o rapaz uma oportunidade de salvá-la do mal familiar. Assim, afasta-se. Evidentemente, o roteiro encontra um jeito de reordenar as situações e reaproximar os sonhos de felicidade individual de Johnny Case com o desejo de emancipação de Linda. O jovem rompe o noivado ao perceber que Julia pretende submeter a união às determinações paternas. Pouco antes do momento crucial, Edward Seton vai ao cúmulo de organizar por conta própria o roteiro para a lua-de-mel. Desgostoso, Case abandona tudo e parte em viagem na companhia do casal amigo Nick Potter (Horton) e Susan Elliott (Dixon). No navio, tem a grata surpresa de encontrar Linda. Ela largou tudo para ficar ao lado dele.


Johnny Case (Cary Grant), Nick Potter (Edward Everett Horton) e Susan Elliott (Jean Dixon)

Johnny Case (Cary Grant) e Linda Seton (Katharine Hepburn)

  
Boêmio encantador é leve e divertido ataque à ética puritana da valorização do acúmulo da riqueza material a qualquer preço. Antes de entrar para o cinema nos primeiros tempos do sonoro, Cukor dirigiu no teatro várias comédias idênticas. Tornou-se especialista no gênero. Compensa a pouca movimentação e os limites do cenário fechado — a ação se desenrola quase que totalmente na mansão dos Seton — com diálogos e comentários afiadíssimos. Atualmente, quase sessenta anos após a realização, permanecem como principal fonte de interesse. Um exemplo: Edward Seton revela a Júlia as dúvidas quanto ao caráter de Johnny. Acaba aludindo à segurança proporcionada pelo charuto preferido, do qual conhece a procedência: “Sei que não explodirá na minha cara”, sustenta. Os atores estão bem, principalmente Cary Grant em animada e solta interpretação. Infelizmente, o divertido casal Potter — contraponto ao modelo de casamento sonhado por Julia — tem poucas cenas. Edward Everett Horton e Jean Dixon estão ótimos, principalmente na festa de celebração do noivado fracassado. No salão de entrada à mansão dos Seton, Nick não se contém e comenta para a esposa: “Isto aqui lembra o palácio de Calígula”. O ambiente, tomado pela grã-finagem esnobe, deixa-os totalmente deslocados.





Roteiro: Donald Ogden Stewart, Sydney Buchman, com base em peça de Philip Barry. Direção de fotografia (preto e branco): Franz Planer. Montagem: Otto Meyer, Al Clark. Direção de arte: Stephen Goosson, associado a Lionel Banks. Decoração: Babs Johnstone. Costumes: Robert Kalloch. Joias: Paul Flato, Eugene Joseff (não creditado). Direção musical: Morris Stoloff. Música (não creditada): Sidney Cutner, Paul Mertz (música de estoque), Joseph Nussbaum (música de estoque), Ben Oakland (música de estoque). Assistente de direção: Cliff P. Broughton (não creditado). Som: Lodge Cunningham (não creditado). Sistema de Mixagem de som: Western Electric Mirrophonic Recording. Tempo de exibição: 95 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1996)



[1] GOMES DE MATTOS, A. C. Cary Grant, um galã sofisticado. Cinemin, 5. série. Rio de Janeiro, n. 32, mar.1987. p. 23.
[2] LEPIANE, João. Um monstro sagrado chamado Katharine Hepburn. Cinemin, 5. série. Rio de Janeiro, n. 51, fev. 1989. p. 22. Parênteses de José Eugenio Guimarães.