domingo, 24 de dezembro de 2017

UMA DILACERANTE TRAGÉDIA ENCENADA NOS GELADOS ALPES SUÍÇOS

Um dos filmes mais dilacerantes que vi é o premiado A viagem da esperança (Reise der hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of hope, 1990), coprodução entre Turquia, Suíça, França e Inglaterra sob direção de Xavier Koller. Conta história simples, tão pungente quanto verdadeira, acerca da trágica situação comum a refugiados e imigrantes ilegais. Estes, tangidos pelo desespero da sobrevivência em condições minimamente dignas, buscam quase sempre a Europa cada vez mais predisposta a não recebê-los. O roteiro escrito pelo diretor em parceria com Feride Çiçekoglu toma por base um acontecimento fartamente noticiado pelos jornais europeus em 1988: a morte por frio e cansaço de um menino de oito anos que tentava, acompanhado dos pais e de outros desesperados, vencer as geladas escarpas alpinas e encontrar possibilidades de existência na Suíça. No filme, o pequeno se chama Ali (Emin Sivas). É o caçula de Meryem (Nur Sürer) e Haydar Sener (Necmettin Çobanoglu em desempenho exemplar). O trio, parte de numerosa família da etnia curda, provém de terras áridas e improdutivas na Turquia. A narrativa direta, despojada e sóbria é forte e honesta ao acompanhar o desenrolar de um turbilhão de sensações concentradas principalmente nas esperanças de Haydar — o pai que hipotecou a vida e o futuro, inclusive da família, para tentar realizar uma utopia barrada pelos aspectos mais ásperos e inexpugnáveis de uma geografia indiferente e cruel em suas variações físicas e humanas. Segue apreciação escrita em 1991. 






A viagem da esperança
Reise der hoffnung/Umud'a yolculuk/Journey of hope

Direção:
Xavier Koller
Produção:
Alfi Sinniger, Peter-Christian Fueter, Enzo Purcell, Bernd Hellthaler.
Gatpicsund, Condorfeatures, SRG/SSR, Antea Cinematografica, Dewe Heltthaler International, Cinerent Filmequipment Service AG, Film Four International, Cineverde, Eurimages, Département Fédéral de l'Intérieur (Suíça), Schweizer Fernsehen (FS), Schweizerische Radio- und Fernsehgesellschaft (SRG), Télévision Suisse-Romande (TSR)
Suiça, Turquia, França, Inglaterra — 1990
Elenco:
Necmettin Çobanoglu, Nur Sürer, Emin Sivas, Yaman Okay, Erdinç Akbas, Selahattin Firat, Meryem Çaki, Yasar Güner, Yaman Tarkan, Hasan Dündar, Ali Demirbas, Hseyin Mete, Semiha Dicleli, Saadet Türköz, Sevin Metin, Sebastiano Filocamo, Ihsan Karasubasi, Selahattin Karadag, Kutay Köktürk, Yasar Kutbay, Dietmar Schönherr, Teco Celio, Theo Marti, Fritz Denoth, Herbert Leiser, Mathias Gnädinger, Abbas Manis, Mehmet Sugan, Erdal Merdan, Francesco Migliaccio, Konstantin A. Schmidt, Andrea Zogg, Hansjörg Schneider, Nicolaï Mylanek, Liliana Heimberg, Jürgen Cziesla, Joseph Scheidegger, Albert Freuler, René Peier, Mastrocinque, Mustafa, Mehmet, Fatma, Sükran, Zeynep, Elif.



O diretor Xavier Koller com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A viagem da esperança



A crítica brasileira em geral torceu o nariz ou apresentou reações mornas para A viagem da esperança. Em parte pelo ressentimento decorrente de motivo francamente fútil: essa despretensiosa produção sobre o drama de imigrantes da etnia curda que trocam as certezas e falta de possibilidades da Turquia na qual habitam pela insegura utopia do “paraíso” suíço desbancou, na corrida ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, o franco-favorito Cyrano (Cyrano de Bergerac, 1990), de Jean-Paul Rapenneau. Algumas crônicas, firmadas quando do lançamento da dolorosa epopeia de Xavier Koller, preferiram trocar o exercício da apreciação e análise por protestos quanto ao suposto equívoco da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Outros setores da crítica, igualmente inconformados, optaram por se perder em discussões bizantinas a respeito de Xavier Koller e o filme serem favoráveis ou contrários aos curdos e turcos.


Deixando de lado as idiossincrasias do Oscar e a questão partidária de fundo maniqueísta, é impossível não se sensibilizar com as vigorosas imagens descritivas da tragédia que aos poucos se acerca dos passageiros de A viagem da esperança. Cabe assinalar, acima de tudo, a entrega sincera e despojada do elenco, com amplo destaque para Necmettin Çobanoglu — visto em Yol (Yol, 1982), de Serif Goren e Yilmaz Güney — no papel de Haydar Sener, marido de Meryem e pai do garoto Ali — soberbamente interpretados, respectivamente, por Nur Sürer e Emin Sivas. Çobanoglu é daqueles atores capazes de concentrar toda a força do personagem na expressividade do olhar repleto de nuances que comunicam todos os sentimentos do mundo.


O garoto Ali Sener interpretado por Emin Sivas

Na árida Turquia, Haydar Sener - desempenho soberbo de Necmettin Çobanoglu - sonha com a Suíça

A família Sener: a mãe Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e o pai Haydar (Necmettin Çobanoglu)


A direção de Xavier Koller revela genuíno grau de sensibilidade e perfeita precisão rítmica na orquestração das peças que formam o inenarrável drama encenado na alpina solidão gelada. O filme é seco e nem por isso desprovido de emoção. A viagem da esperança está entre as mais tristes e dramáticas histórias encenadas pelo cinema. O roteiro de Koller e Feride Çiçekoglu parte de uma notícia de jornal que deixou funda impressão no diretor: a morte por frio e cansaço de um garoto turco de sete anos. Acompanhado dos pais e de um punhado de conterrâneos desesperados, tentava, em outubro de 1988, entrar ilegalmente na Suíça pela mais inexpugnável das rotas.


Incentivado pelo exemplo do irmão Cemal — que trocou a árida e pedregosa paisagem rural da Turquia pela promessa de leite e mel da terra suíça da “promissão” —, Haydar resolve se desprender das madrastas raízes. Vende o pouco que tem, distribui sete dos oito filhos entre os parentes e parte com o caçula e a esposa em busca do “paraíso”. Confia o futuro a uma rede clandestina de agenciadores inescrupulosos e embarca em navio cargueiro da rota Istambul-Nápoles. Na cidade italiana a família consegue carona com o simpático e solidário caminhoneiro Ramser (Gnädinger) até a fronteira com a Suíça. O sonho, aparentemente tão fácil, termina no posto de inspecção. Haydar, Meryen e Ali são barrados. Voltam a Nápoles e encontram compatriotas igualmente clandestinos em busca do mesmo sonho. Juntos e dispostos a tudo confiam em uma quadrilha local de exploração de imigrantes ilegais formada basicamente de turcos. A “organização” irá introduzi-los na Suíça pela porta dos fundos: os Alpes íngremes e gelados. Haydar e companhia se submetem a um insuportável estágio na invernal estação do inferno, sem direito à aprovação. A geografia, tanto a física — a escarpa traiçoeira, o vento cortante e constante, o frio mortal — como a humana — sarcasmo, ganância, falta de escrúpulos, indiferença, rigorismo burocrático da fria e impessoal racionalidade legal —, logo revela implacável crueza e resistência à penetração de estranhos.


A família Sener -  Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - com o solidário caminhoneiro Ramser (Mathias Gnädinger)

 Ramser (Mathias Gnädinger) e Ali (Emin Sivas)


Momentos antes, com um comentário amargo e resignado diante das dificuldades, Haydar concluiu: o país pretendido, que se recusava a recebê-los, não era de fato para eles. Porém, foram longe demais para retornar. Os Alpes, percebidos à distância, pareciam tranquilizadores. Lembram a paisagem mediterrânea elevada e pedregosa da Turquia das origens — descontados os tons acinzentados do horizonte e a quase imperceptível capa branca dos cumes nevados. Porém, basta o contato real com a obrigação extenuante e perigosa da escalada para qualquer referência de familiaridade se perder. Na noturna solidão gelada da montanha, Haydar e Meryem sofrem a suprema provação de ver ceifadas as raízes que lhes dariam continuidade e validariam a arriscada empreitada: Ali não resiste ao frio e morre. O pai experimenta a dura provação de sobreviver à descendência. O expressivo olhar de Çobanoglu é perfeito na comunicação da brutal sensação da perda, traduzida como fracasso, inutilidade e falta de sentido.



Acima e abaixo, a família Sener - Meryem (Nur Sürer), Ali (Emin Sivas) e Haydar (Necmettin Çobanoglu) - entre apreensivas esperas e deslocamentos


Duas fotografias assumem particular e capital importância em A viagem da esperança. A primeira é o cartão postal enviado por Cemal. Parece menosprezar ou ocultar, na exposição da paisagem verdejante e acolhedora em primeiro plano, o monótono e trágico som da música soprada pelo cortante e mortal vento dos Alpes localizados ao fundo. A outra é o retrato obtido por Ali do caminhoneiro que conduziu a família à fronteira suíça. Mostra, de frente, o rosto brincalhão de Ramser apontando a língua. Esse instantâneo inocente, de jocosa puerilidade, parece traduzir, ainda que acidentalmente, o desprezo da Europa pelos aflitos deserdados que lhe rondam as fronteiras.


Ali Sener (Emin Sivas)


Além do Oscar, A viagem da esperança arrebatou, no Festival de Locarno, o Leopardo de Bronze pela Melhor Direção.





Roteiro: Xavier Koller, Feride Çiçekoglu, a partir de notícia de jornal. Direção de fotografia (cores) e câmera: Elemér Ragályi. Segunda câmara: Pio Corradi. Assistentes de câmeras: Claudios Kelterborn, Marco Barberi, Marco Barberi, Imre Sisa, Heike Huber. Montagem: Daniel Gibal, Galip Iyitanir. Música: Jean Garbarek, Terje Rypdal, Arild Andersen, Egberto Gismonti. Produção musical: Manfred Eicher. Assistente de direção: Konstantin Schmidt. Continuidade: Heike Huber. Produtor associado: Sabina Woolf. Direção de arte: Kathrin Brunner. Figurinos: Grazia Colombini. Gerente de produção: Raimondo Esposito. Coordenação de construções: José Matos. Contrarregra: Bele Schneider. Assistente de pós produção de som: Michael G. Gunther. Ruídos de sala: Andreas Schneider. Alimentação e assistência de produção: Ernst Meyer. Contabilidade: Roberto Ornaro. Agradecimentos a: Edi Hubschmid. Tempo de exibição: 110 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1991)