domingo, 28 de janeiro de 2018

EIZÔ SUGAWA: O NIPÔNICO “COISA NOSSA” ENCERRA A TRILOGIA DAS FERAS

O cineasta japonês Eizô Sugawa (1930-1998) integrou, em 1996, o júri da Vigésima Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. O cinéfilo interessado sabe: sobre ele é difícil encontrar referências e fontes substantivas. O Brasil é honrosa exceção, graças aos esforços de cineastas e críticos da capital paulista. Por incrível que pareça, é pouco conhecido na terra natal e no resto do mundo. No entanto, devido ao empenho de cronistas — Leon Cakoff, Inácio Araújo, Jairo Ferreira; cineastas — Carlos Reichenbach, Walter Hugo Khoury, Luís Sérgio Person; e estudiosos — Ismail Xavier, José Fioroni Rodrigues, é possível afirmar: Sugawa é “coisa nossa”. O significativo contingente nipônico na população da cidade de São Paulo transformou-a em privilegiado polo para a exibição de filmes oriundos do Japão. Com 22 títulos na filmografia, o diretor marca presença nas telas paulistanas desde o começo dos anos 60. Logo despertou a atenção. Por mera curiosidade e acaso conheci na Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro, em 1997, a 'trilogia das feras': Morte à fera (Yajû shisubeshi, 1959), Na trilha das feras (Kemonomichi, 1965) e Caça às feras (Yajû gari, 1973). São dramas policiais influenciados pelo noir estadunidense. Geralmente problematizam os rumos do Japão moderno — potência capitalista que emergiu derrotada da Segunda Grande Guerra — em diálogo com os fundamentos tradicionais do país. Em Caça às feras o detetive Akira Funaki (Fujioka) investiga o sequestro do presidente de filial japonesa de uma multinacional de refrigerantes. O caso levanta questões sobre globalização, poder do Estado, capitalismo, identidade e valores nacionais. Eizô Sugawa fez assistência de direção em filmes do conterrâneo Mikio Naruse. Infelizmente, foi impossível levantar imagens de boa qualidade — cartazes e fotos — para ilustrar esta matéria escrita em 1997.







Caça às feras
Yajû gari

Direção:
Eizô Sugawa
Produção:
Sanezumi Fujimoto, Ryu Yasutake
Toho
Japão — 1973
Elenco:
Hiroshi Fujioka, Junzaburô Ban, Mayumi Nagisa, Tetsuo Tomikawa, Yoshizô Yamaguchi, Kazutaka Sugawara, Tsutomu Hiura, Mariko Nakamura, Yoshio Inaba, Kazuo Katô, Jun'ichirô Oki, Tetsuya Kaji, Haruo Suzuki, Yûsuke Nishimoto, Fran Setzer, Shizuo Chûjô, Kuniyasu Atsumi, Toby Kadoguchi, Noboru Mitani.






Caça às feras encerra a trilogia iniciada por Eizô Sugawa com Morte à fera (Yajû shisubeshi, 1959) e mediada por Na trilha das feras (Kemonomichi, 1965). O cineasta é praticamente desconhecido dos brasileiros. As notáveis exceções se concentram em São Paulo, capital. Aí, o significativo contingente nipônico da população favoreceu a exibição de variados títulos dos mais diversos diretores conterrâneos de Akira Kurosawa, Kenji Mizoguchi, Yasujirô Ozu e Nagisa Ôshima — principalmente ao longo das décadas de 60 e 70. Aliás, não é exagero afirmar que a relativa notoriedade internacional angariada por Eizô Sugawa decorre de setores formados por cineastas e críticos paulistanos que o descobriram ao tempo da exibição de Morte à fera.


Caça às feras é história de detetive com tinturas trágicas. De início, passa a sensação de estranhamento. Em regra, os congêneres estadunidenses são melhor conhecidos. Daí deriva a surpresa: Sugawa — propositadamente ou não — ancora a realização no melhor que o cinema policial made in USA produziu, notadamente na corrente noir de personagens e histórias marcadas por desencanto, ceticismo e niilismo. As mesmas características são percebidas em Caça às feras. Na retaguarda está o ponto de vista amargo lançado pelo cineasta ao Japão urbano e moderno, potência industrial, capitalista e transnacional — apesar da derrota sofrida na Segunda Guerra Mundial.



  
Akira Funaki (Fujioka), jovem investigador, é reflexo desse Japão em mutação. Segundo se depreende das imagens, ele e o país estão incertos quanto ao rumo a tomar. O personagem individualista e de postura independente está em conflito com os valores sociais mais arraigados da terra, apoiados sobre tradição, hierarquia e família. Vive relação conturbada com o pai Chôtarô Funaki (Ban), policial da velha guarda. Na corporação também não é bem avaliado devido aos métodos próprios utilizados nas diligências. Quase sempre faz pouco caso das determinações superiores. O drama é acompanhado no contexto de uma crise política que deflagra a ação. É maio de 1978. A Frente Negra, organização radical de esquerda, sequestra o presidente da filial japonesa da Pop-Cola — a semelhança com os nomes de “outras” marcas não é mera coincidência —, indústria transnacional de refrigerantes com matriz em Nova York. Para libertá-lo exige que a fórmula da bebida seja divulgada publicamente. Caso contrário será morto. A empresa não cede. Prefere oferecer dinheiro à organização, apesar da discordância da polícia. Porém, a Frente Negra concorda com os novos termos. Ao fim, os resultados são trágicos. O refém é executado. Ao mesmo tempo o cerco policial se fecha sobre os sequestradores, mortos um após outro enquanto mensagem gravada divulga ao público o manifesto do grupo e as razões do ato.


Com Caça às feras Sugawa antecipa, em 1973, preocupações tão em voga no tempo de agora — marcado pela aceleração do processo de globalização. O poder de fogo de empresas transnacionais — praticamente autônomas em relação às forças do Estado — é evidente. A Pop-Cola é apresentada como estrutura sem rosto e francamente poderosa. Em Nova York toma decisões que afetam completamente os rumos da investigação policial em solo japonês. Também se nota a ausência de alternativas de longo alcance, capazes de gerar soluções para a crescente fragmentação e perda de valores. A Frente Negra representa a síntese desesperada frente ao beco sem saída da valorização nacional. Significativamente, tem os líderes encurralados e mortos no alto de um arranha-céu. Entretanto, o insatisfeito Akira de certo modo contribui com uma das exigências da organização esfacelada: não interrompe a exigida leitura do manifesto político — um libelo anticapitalista irradiado continuadamente aos quatro ventos.



  
Caça às feras recebeu da crítica paulistana o prêmio de Melhor Lançamento Estrangeiro de 1996 — um exagero, certamente. Em geral, é considerado o mais fraco componente da “trilogia das feras”. Principalmente pelo fato de Sugawa suavizar a crítica às instituições japonesas — no caso, a polícia. Esta recebeu miradas mais severas em Morte à fera e Na trilha das feras.


O fim concede a Akira uma espécie de redenção ou absolvição: comparece ao enterro de Onimaru (Inaba) — policial da velha guarda e amigo de Chôtarô —, morto em consequência dos ferimentos recebidos durante atentado. Esse gesto reverencial transcende, segundo a visão de Sugawa, o campo dos afetos pessoais. Seria uma forma de render respeito à tradição, de acordo com as pretensões do cineasta.




Roteiro: Zenzô Matsuyama, Osamu Nishizawa, autores da história adaptada por Eizô Sugawa. Música: Kunihiko Murai. Direção de fotografia (cores): Daisaku Kimura. Desenho de produção: Kazuo Satsuya. Gerente de produção: Toshiro Tokumasu. Assistente de direção: Fumisake Okada. Som: Eishirô Hayashi. Eletricista-chefe: Hiromitsu Mori. Tempo de exibição: 83 minutos.


(José Eugenio Guimarães, 1997)